Vinte e quatro anos depois de a Liga dos Campeões ter deixado de contar exclusivamente com equipas campeãs, os adeptos acordaram para o facto de que existem uns quantos clubes que querem sair para fundar uma liga privada que, pasmem-se, não se rege por critérios de mérito, pensa unicamente no lucro dessas equipas, e deixa fora todas as outras (as pobres mas meritórias suponho) por desprezar “critérios desportivos”. Eu cheguei a pensar que isto era dito apenas por pessoas desatentas ao futebol continental desde 1997. Mas são tantas as vozes, e tanta a paixão na defesa do desporto-rei, que tenho de pôr provisionalmente de parte essa hipótese. Tenho que assumir que, por alguma razão que desconheço, existe mérito desportivo no quarto classificado da Liga Inglesa ter acesso directo à competição, mas o campeão checo não. Ainda que esse critério supostamente desportivo resulte essencialmente do facto de a liga inglesa ser mais rica que a liga checa. Nestes 24 anos em que o “critério desportivo” imperou, desde fora das 4 grandes ligas europeias apenas uma  equipa, o FC Porto, ganhou o troféu, e mais duas, Mónaco (no mesmo ano) e PSG (que não é exactamente uma equipa pobrezinha) chegaram à final. Nos 24 anos anteriores, as equipas das principais ligas também dominaram, mas seis equipas de fora desta elite ganharam o troféu (incluída uma romena e uma juguslava) e, por 8 vezes, o finalista não pertenceu ao clube milionário. O motivo para o que sucedeu nas últimas quase duas décadas e meia, como ninguém deixará certamente de acreditar, foi puramente desportivo e uma questão de mérito. Porque as ligas mais ricas, tal é o mérito que coleccionaram, merecem levar mais equipas à competição e enriquecer mais, ao ponto de, neste momento, nenhuma equipa dessas paragens precisar sequer da chatice de ter que passar pelas rondas de classificação, que cada vez dispõem de menos lugares de acesso. Seguramente porque o mérito desportivo está cada vez mais claro.

Obviamente, e as vozes também foram rápidas a denunciar, a Superliga também cria um problema de competitividade nas ligas internas. Isto porque estas equipas vão passar a dispor de orçamentos contra os quais as restantes não poderão competir. Depois de, na última década, a Juventus ter arrecadado 9 campeonatos nacionais, o Bayern de Munique, o Shakhtar e o Olympiakos 8 cada, o PSG 7, etc. etc., é normal que este problema apareça agora e a Juventus ganhe 13 ou 14 dos próximos 10 campeonatos. Claramente as vozes do futebol, tão lestas a opinar, são lentas a perceber e 24 anos não foram suficientes. O problema desportivo e de competitividade no futebol europeu existe há pelo menos uma década, pelo que é difícil defender que a situação não seja responsabilidade do modelo em vigor. A solução, para quem se preocupa com questões de competitividade e desportivismo, passaria justamente por um arranjo das competições que aproxime as tremendas disparidades que existem dentro das mesmas. Isto é, se de verdade acreditamos que o problema é a falta de critérios desportivos.

E agora os clubes que mais enriqueceram com esta situação querem abandonar os pobrezinhos à sua sorte (ingratos) e estes reclamam a possibilidade de competir desportivamente, talvez porque, a partir de agora, vão finalmente começar a ganhar. Para ser exacto, não reclamam a possibilidade de poder competir, já que, pelo menos oficialmente, nenhum manifestou ao Sr. Florentino Pérez a intenção de participar na sua liga e assim poder jogar com os grandes todas as semanas. Pelo contrário, todos exigiram que os clubes que queriam jogar exclusivamente entre si não o possam fazer nos moldes em que pretendem, para poderem ter a oportunidade de defrontar um ou dois destes duas vezes num ano. A preocupação manifestada por tanta gente com as deficiências do modelo de competição proposto foi quase enternecedora, atendendo a que nenhuma destas pessoas arriscava directamente o seu capital, a sua solvência ou a sua reputação. Obviamente que há muitos que arriscam a sua solvência se as suas equipas deixarem de ter a possibilidade de defrontar, ocasionalmente, alguma deste grupo, mas nenhum clube de futebol, por ser rico, tem a obrigação de garantir o saneamento financeiro dos seus adversários só porque acontece que se cruzam de vez em quando em campo. Os grandes clubes de futebol europeus passam por dificuldades que são, em grande parte, autoinfligidas. Mas, por isso mesmo, procuraram uma possível solução para o seu problema. A minha esperança, se vivêssemos num mundo normal, seria que os clubes que indirectamente se vejam afectados procurassem fazer o mesmo pelos seus próprios meios.

Obviamente que num terramoto de tais dimensões existem potenciais perdedores e ganhadores, a começar pela estrutura que montou o império futebolístico que hoje existe e da qual tantos dependem para continuar a competir acima das possibilidades dos seus rivais e mais facilmente os esmagarem. É certo que o Olympiakos, o Shakthar ou o BATE Borisov (campeão 13 anos consecutivos e presença regular na fase de Grupos), nos moldes actuais, nunca competirão de igual para igual com o Liverpool, mas o que para o Liverpool é insuficiente como compensação, para estes são receitas suficientes para manter uma hegemonia doméstica de que não querem abrir mão. Por último, estão os que, mesmo não recebendo um euro da UEFA, temem desaparecer assim que os seus dominadores se tenham que fazer à vida. No fundo existe uma complacência, na zona de abaixo do sistema, que permite uma vida cómoda aos agentes desportivos a vários níveis, sempre e quando seja possível o brilharete ocasional e existam adeptos dispostos a pagar o pagode. O problema é que o mecanismo da competição pelos recursos leva a que as margens dos produtores se reduzam e a qualidade do produto aumente, ou ambas, em benefício do consumidor, pelo que não existe forma de o equilíbrio estático que a UEFA tenta garantir se mantenha quando os clubes têm que competir entre si, e o futebol com outros eventos na arena global. Em particular, quando o organizador do monopólio recolhe 30%-50% das receitas totais só por proibir competições fora da sua égide. Para as equipas que mais receitas geram (e necessitam), está claro pelos últimos acontecimentos, que este é um preço demasiado elevado a pagar por um monopólio, pelo que estão dispostas a prescindir do mesmo. Este facto não deixa de ser curioso. São as equipas que menos ganham as que parecem mais interessadas em manter o esquema, o que me faz pensar que assiste razão às grandes quando alegam que não lhes compensa jogar com as outras. A força do monopolista reside na numerosa clientela que alimenta.

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Em resposta ao anúncio de secessão, a UEFA, as Ligas e as Federações, enquanto gestoras de monopólios geográficos que perigam, ameaçaram com acções legais, sanções e proibições. Julgo que os clubes estavam preparados para esta intimidação. O que provavelmente subestimaram foi a linha editorial crítica da maioria dos meios de comunicação, as pressões políticas da EU e do Governo britânico e a reação de alguns piquetes mais ou menos espontâneos de adeptos. Não pretendo saber exatamente o que fez os clubes recuar (até porque o catalizador não tem que ser o mesmo para todos), mas se tenho que escolher um, fico com a reação adversa de muitos adeptos, que deixaram claro que não queriam ser tratados como clientes. Ironicamente, na medida em que é o que são, os donos dos clubes recuaram. Qual é a empresa que no seu perfeito juízo faz alguma coisa que os clientes não queiram? Especialmente se o dono for americano? É verdade que não conhecemos as opiniões daqueles clientes que, noutros continentes, ligam os televisores a horas impróprias para ver as principais equipas europeias jogar, mas se algo ficou claro, é que para a opinião pública europeia estes não existem.

Se os piquetes têm razão nas suas queixas, e a UEFA no seu modelo, então também está meridianamente claro que o que o futebol realmente vende não é um espectáculo desportivo, mas a possibilidade de indivíduos perfeitamente normais experimentarem desde o seu sofá uma sensação de domínio e subjugação dos mais débeis e, ocasionalmente, a satisfação por derrubar algum poderoso. Em suma, uma grande parte dos adeptos não está tão interessada no espectáculo como na vitória esperada do seu clube e é por isso que aceitam, há várias décadas, uma competição com critérios políticos, manchada por escândalos de corrupção, que confundem, ou querem confundir, com uma meritocracia desportiva. A intervenção de Boris Johnson, ameaçando rever as leis laborais de excepção que permitem aos clubes ingleses competir no mercado global, é um bom indicador de como os políticos percebem o valor do futebol como arma política, porque apela e se alimenta dos mesmos instintos que eles agitam e tentam manipular. Algo que não surpreende ninguém que conheça minimamente a história dos Jogos Olímpicos, tanto os modernos como os da Antiguidade. A prova física, para além da beleza estética e estratégica é um símbolo da guerra, que desperta as paixões ao mesmo tempo que se espera que apazigue a violência.  Existe, indubitavelmente, uma apetência do público por uma competição de futebol de clubes continental. Mas a forma nacionalista, socialista e tribal que emana da sua organização actual, alimenta-se de aspirações análogas de grande parte dos adeptos europeus na forma como percebem a sociedade, de aí julgarem ser mérito algo que não passa de decisão política.

No meio de isto tudo o elefante continua no meio da sala. Os principais clubes, na medida em que querem oferecer um melhor produto para ser viáveis e satisfazer os seus clientes, foram privados dos meios que julgaram ser necessários para o fazer. Os clientes, em particular os de além-mar, e todos os que não entendem o porquê de um Salsburgo-Lokomotiv, um Atalanta-Midtjylland; um Krasnodar-Rennes; ou um Dínamo Kiev-Ferencvaros merecerem pertencer à competição futebolística mais importante do Mundo (em parte porque o equilíbrio político que a UEFA ajudou estabelecer relegou estas equipas a pouco mais que sparrings dos jogos com os grandes) vão obter como resposta um aumento de 32 para 36 participantes, para diluir ainda mais a relevância (e a rentabilidade marginal) de cada jogo, obrigando as maiores equipas a subsidiar ainda mais parasitas. Entretanto os jovens, que com a passagem dos jogos para trás do véu do pay-per-view e a concorrência de outras ofertas de entretenimento (que o futebol político europeu deixou claro não querer ser), deixam de partilhar os códigos de domínio e subjugação dos seus maiores e de perceber a suposta transcendência dos encontros futebolísticos, mesmo quando se trate de um Istambul Basaksehir – PSG, com ou sem árbitros racistas. Previsivelmente, por este caminho deixarão de financiar o pagode e acabarão por provocar a abdicação do desporto-rei.

A Superliga é uma tentativa de alterar o rumo do Titanic. Não sei se a tempo ou demasiado tarde. Mas a entrada em cena de um campeonato continental disputado a tempo inteiro (sei que esse não era o objetivo imediato, mas seria inevitável e daí a oposição das ligas e políticos nacionais) tinha o condão de agitar as águas. Os clubes que ficam de fora seriam obrigados a reorganizar-se, e um caminho possível seria a organização de campeonatos sub-continentais (Liga Ibérica? Liga Britânica? Holanda-Bélgica? Austría-Hungria-Chequia? Turquia-Grécia? Quem sabe?) com as equipas mais representativas de cada região e que, com a necessidade de captar audiências mais vastas num regime verdadeiramente concorrencial, reduziriam a componente política-nacionalista-socialista que actualmente envolve o futebol, e faz que a maioria dos adeptos do Benfica prefiram ver um Benfica-Rio Ave a um Benfica-Sevilha porque o Rio Ave “lhes diz mais” mesmo quando o segundo jogo seja, em teoria, um melhor espectáculo desportivo. Dentro desta dinâmica, que só um meio plenamente concorrencial permite coordenar, os 12, 15 ou 20 clubes que originalmente constituiriam a Superliga introduziriam instrumentos de promoção e despromoção na mesma, começando pelo mais lógico que é a compra-venda de licenças (manter uma equipa numa Superliga, sem a proteção de rankings, exige a superar constantemente o custo de oportunidade de vender essa licença no mercado) que permitiria que equipas de cidades europeias importantes, que actualmente só contam com ligas pequenas e/ou periféricas como Amsterdão, Praga, Moscovo, Istambul, Viena, etc. pudessem chegar a ter clubes nos 10 melhores da Europa, algo que neste momento lhes está completamente vedado.  Equipas essas que, por outro lado, os adeptos do futebol vão entender o porquê de estarem nessa competição. Uma economia de mercado, mesmo a do futebol, é dinâmica e premeia os mais eficientes, é preciso não ter o mínimo de capacidade de previsão para não perceber que, nesses moldes, 3 clubes de Londres, 3 do Noroeste de Itália, 3 do Noroeste de Inglaterra e 2 de Madrid teriam muita dificuldade em se manter todos na ribalta a longo prazo, ao contrário do que sucede hoje em dia, só porque a origem comum de uma liga doméstica rica os beneficia. Como comparação, na NBA só as duas maiores cidades norte-americanas (Nova Iorque e Los Angeles) possuem duas equipas na competição (na NFL e NHL só Nova Iorque). Mas isto são os americanos, para quem o desporto é só um “espectáculo”. Eu não sei se isto seria suficiente para salvar o futebol, nem me importa muito, mas tenho a certeza que tornaria a sociedade bastante mais receptível às ideias da liberdade de empreender e de associação, mais respeitadora da propriedade alheia e menos permeável aos abusos do poder porque poderia perceber melhor os frutos de cada árvore.