No mundo das ideias, a vacinação europeia parecia destinada ao sucesso. A União passou mal na primeira fase da pandemia, quando os italianos se aperceberam de que a solidariedade era mais um objetivo do que uma promessa e os Estados-membros se envolveram numa competição por equipamento médico. Rapidamente se instalou a mentalidade de crise, que neste assunto implica sempre dúvidas sobre a viabilidade do “projeto”.

Para quem trabalha nas instituições europeias, a sobrevivência é um assunto sério e provavelmente o único que merece ser enfrentado com decisões. Foi assim que no verão se construiu a narrativa da “recuperação”, com o acordo de princípio para os fundos de recuperação e para a compra centralizada de vacinas.

Bruxelas estava de volta e em força, com a incumbência de distribuir dinheiro a economias moribundas e o alívio da peste às massas. Os problemas dos europeus estavam a ser resolvidos pelas instituições comuns e os acontecimentos seguiam o grande plano do progresso.

Depois veio o outono. Não que na Europa isso tivesse importado, porque os governos se deixaram enlear no slogan e não se convenceram, apesar dos avisos dos especialistas, das dificuldades do inverno. Mesmo quando tudo começou a piorar, foi difícil mudar de mentalidade porque se esperava que as vacinas e os fundos, tratados pela poderosa e competente Comissão, trariam a solução logo em 2021.

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Poucos cuidaram de verificar a competência. Os fundos, cuidadosamente desenhados para uma transformação “verde”, nunca foram pensados para conviver com a pandemia ou, sequer, responder diretamente aos mais prejudicados – como a economia portuguesa vai descobrir em breve, há uma tensão considerável entre o turismo e a nova conceção de proteção ambiental – e já se percebeu que também não vão fazer a diferença no cenário mundial.

Falar da economia europeia, hoje, depende muito pouco de programas de recuperação. Na verdade, essa discussão serve a políticos e comentadores, porque permite repetir posições pensadas para outras crises, com uma divisão ideológica já mais clara. A utilidade é discutível: debates sobre planos de “resiliência” não disfarçam o grande problema das nossas economias, que é evidente para qualquer cidadão que não tenha acesso ao espaço público.

As empresas estão fechadas. Não é preciso o mais competente de nós para perceber que a reabertura da economia é a grande – e devia ser a única – prioridade. Por sua vez, a reabertura depende da vacinação, que até pode nem ser suficiente.

A atribuição de poderes à Comissão Europeia para negociar a compra conjunta de vacinas foi uma decisão aplaudida à época e ainda hoje consensual. É uma boa ideia. A Comissão tinha condições para fazer um bom trabalho e corresponder à grande confiança depositada: é um enorme corpo técnico, com muito dinheiro para gastar em representação de 450 milhões de interessados.

O assunto esteve para morrer aí. A falta de escrutínio das instituições europeias é um dos grandes problemas da sua atual configuração. Sobretudo num país como Portugal, em que o debate público tem vícios de preguiça, a possibilidade de uma falha europeia só se coloca quando há dinheiro envolvido – e normalmente para notar que devia chegar mais e com menos condições.

Na compra de vacinas, que há mais de um mês se percebia ter sido menos do que excelente, houve grande incredulidade com os desenvolvimentos da última semana. Era inconcebível que uma Comissão progressista, liberal e técnica tivesse falhado a partir de uma boa ideia, ao ponto de nem sequer acompanhar países como os Estados Unidos ou o Reino Unido, que com alguma arrogância tinham sido marginalizados.

O pânico que se seguiu foi um momento baixo da história europeia. O conflito com a AstraZeneca sobre doses de uma vacina que era aparentemente fundamental, mas não tinha sido aprovada e foi logo depois (sem evidência científica) considerada ineficaz por alguns líderes europeus, faz-nos suspeitar da estratégia seguida. Tentar impor uma fronteira na Irlanda ficará como o grande exemplo das consequências desse desnorte.

O que falhou? O processo de compra, desde logo. A Comissão “diversificou o risco”, mas fê-lo apostando em vacinas que demoram e, do que se sabe do processo, quis discutir mais custos do que calendários, numa altura em que as economias continuam impedidas de funcionar e se gastam quantias extraordinárias em apoios a empresas e trabalhadores. Para as negociações foram enviados especialistas em acordos comerciais, porque o grande corpo burocrático tinha, afinal, pouca experiência em matérias de saúde.

Em tudo isto, também nós falhamos. No Reino Unido como na América, os governos foram criticados e responsabilizados pelas suas opções no combate à pandemia. São governos nacionais, com um eleitorado que os conhece e percebe a influência das suas decisões. Por outro lado, criticar Bruxelas para lá do orçamento é ainda uma atitude que se evita, por medo de associações a qualquer tipo de extremismo ou de traição ao valor supremo do “europeísmo”.

O “europeísmo” tem um significado cada vez menos claro, mas se for uma forma de justificar a benevolência que reservamos para instituições que, satisfeitas por terem comprado muitas doses, se apercebem que não pensaram em garantir a sua entrega rápida, é apenas uma forma especial de negligência.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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