A perplexidade e inquietação públicas provocadas pelo desfecho da instrução da Operação Marquês são (infelizmente) justificadas. Às preocupações suscitadas no plano político, juntam-se agora outras no plano jurídico: quanto ao poder judicial e às leis da República.

Desde o início que a investigação criminal apresentou factos que faziam duvidar da saúde e integridade da nossa democracia. O Ministério Público desenterrou actuações por titulares de órgãos de soberania que, sejam ou não criminalmente relevantes, descredibilizam o sistema político. A decisão instrutória adensa a crise de confiança quanto à seriedade dos esforços de combate à corrupção, agora por força dos actores judiciais.

Naquela tarde de sexta-feira, o juiz de instrução criminal começou por apresentar-se enquanto “boca da lei”, qual executor do previamente determinado e definido pelo legislador. Foi um dos aspectos mais negativos da prestação. É que qualquer juiz participa necessariamente na geração do sentido das leis: porque é chamado a interpretá-las e aplicá-las a casos concretos. Independentemente da competência e imparcialidade, que neste caso não se questionam, qualquer juiz tem de seleccionar entre várias interpretações possíveis das normas jurídicas e, com isso, privilegia um resultado em detrimento de outro.

Foi o que ficou evidente a propósito da prescrição dos crimes de corrupção. O juiz Ivo Rosa fez escolhas quanto ao respectivo modo de contagem. Antes dele, também o Tribunal Constitucional as havia feito. A pergunta que se impõe é esta: temos uma Constituição amiga da corrupção e protectora de corruptores e corrompidos?

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Em 2019, o Tribunal Constitucional—no Acórdão n.º 90/2019—analisou se a prescrição de crimes de corrupção activa iniciava a partir do acordo entre as partes ou da posterior entrega das vantagens. Estranhamente, julgou que apenas a contagem desde o acordo seria compatível com a Constituição. Como demonstra a declaração da juíza que votou vencida, tratou-se de uma escolha—fundamentada claro, mas ainda assim contingente. Os dois juízes em maioria chegaram àquele resultado interpretativo por via de uma discussão conceptualista acerca do momento da “consumação” do crime. De forma linear, optaram por um entendimento formalista, cego à globalidade da conduta criminosa corruptiva sempre que ao acordo se seguem os pagamentos. E, nesse raciocínio, desconsideraram metodologicamente as consequências práticas de tal interpretação: a menor efectividade do combate à corrupção. É surpreendente. Por um lado, é internacionalmente sabido como os prazos de prescrição constituem obstáculo severo à punição deste tipo de crimes. Por outro lado, não se procurou colher contributos de outras ordens jurídicas: na Alemanha, é pacífico que a prescrição começa apenas com o término do cumprimento do acordo ilícito (entrega da contrapartida ou execução do acto prometido).

A orientação dos juízes constitucionais volta para nos assombrar na decisão instrutória da Operação Marquês. Agora, foi a vez de o Juiz Ivo Rosa fazer escolhas: ora elegendo a data do acordo—em vez da data do último pagamento pelo corruptor—como decisiva para apurar da prescrição dos crimes de corrupção passiva do antigo Primeiro-Ministro; ora invocando o referido acórdão do Tribunal Constitucional como suporte. São escolhas porque: seria fácil recorrer a argumentos e doutrina jurídica concordantes com o sustentado pelos Procuradores quanto ao modo de contagem do prazo prescricional; e o acórdão do Tribunal Constitucional teve efeitos restritos ao caso concreto que julgou em 2019 (não sendo vinculativo em outros processos), para além de versar sobre corrupção activa (e não passiva).

Em suma, teria sido juridicamente possível chegar a outras conclusões. Algo que dificilmente contenderia com garantias dos arguidos (indiscutivelmente essenciais em Estado de Direito): o princípio da legalidade criminal não pode ser transformado em dever geral de impunidade. Urge rejeitar uma Constituição amiga da corrupção.