A cultura japonesa tem uma matriz confucionista muito forte. No confucionismo não só qualquer forma de assassínio é reprovada, mas qualquer inatenção com o bem-estar dos mais velhos é alvo de forte reprovação. Escusado será dizer que no Japão não há crime que seja considerado mais execrável que o parricídio ou matricídio, e que a “liberalização” da eutanásia conta com a acérrima oposição das organizações de médicos e enfermeiros, para além da forte oposição da população em geral. E às crianças é contada em casa a seguinte história popular, versões das quais também aparecem em livros escolares e em manga e anime:

“Há muito, muito tempo, numa região montanhosa e pobre, havia um pequeno feudo que tinha por soberano um dáimio que não respeitava nem sabedoria nem virtude [nota: qualquer semelhança com o nosso país nos dias de hoje é pura coincidência]. Não conhecia nem piedade, nem a via da retidão e desprezava o ensinamento dos sábios antigos, considerando a sua própria vontade como sendo o supremo critério para todos os viventes. Assim, como obedecia apenas ao bater do seu próprio tambor, não admitia que o seu mais pequeno capricho não fosse acatado, quer pelo corpo, quer pela mente dos seus súbditos. Certo dia, ao considerar que a pobreza dos seus domínios, e que o número de bocas que lá sobreviviam, não lhe permitia espremer mais tributo dos camponeses, este barão fez com que fosse afixada a seguinte lei por todo o seu senhorio:

‘Todos os velhos com sessenta ou mais anos
Devem ser abandonados nas montanhas.
Quem lhes der de comer, de beber ou de vestir será réu de morte.’

“Esta ordem era acompanhada por um aviso de aplicação das mais terríveis penas de espoliação e tortura e morte, que recairiam sobre filhos, netos e restante família que não cumprisse fielmente o estipulado, penas que também seriam aplicadas a todas as famílias integradas no gonin-gumi. [Gonin-gumi era um sistema de coresponsabilização de cinco famílias vizinhas por qualquer ato criminoso praticado por um dos seus membros].

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“Numa das mais pobres aldeias deste feudo, vivia feliz, com a sua mãe, já de idade avançada, o camponês Yahei, modelo de piedade filial. Ouvia dedicadamente todos os conselhos da sua venerável progenitora e o seu mais ínfimo desejo era por ele executado pontual e fielmente. Vivendo de forma reta, era feliz, apesar de a sua pobreza ser a mesma da terra íngreme e dura e cheia de pedra que ele, com todas as suas forças, amanhava.

“À medida que se aproximava o momento de a sua mãe completar sessenta anos, Yahei crescia em angústia e pensava como se poderia eximir a tão vil ação imposta pelo seu Senhor. Escondê-la em casa não era possível porque os vizinhos se oporiam. Fugir para outra província, por estrada, era impraticável, pois os guardas das barreiras não permitiriam a sua passagem, e escapar pelas montanhas seria inviável porque a idosa não aguentaria o caminho. Vendo a sua aflição interior, disse-lhe a progenitora: ‘Quanto mais cedo melhor. Não há motivo por te entristeceres por mim. Quanto mais rapidamente eu for ter com o Bodhisattva da Compaixão e me puder sentar num lótus em sua contemplação, melhor para mim.’

“Assim, embora ainda vacilante de escrúpulo e dúvida e hesitação, quando amanheceu, Yahei pôs a anciã às costas e dirigiu-se para a montanha onde os velhos da região eram expostos, pela impiedade do príncipe, à inclemência dos elementos e à ferocidade das bestas. À medida que ia avançando pela colina e se ia embrenhando na floresta, o carreiro ia-se tornando cada vez mais apertado, ténue e alcantilado até que, por fim, desapareceu. Yahei não notou imediatamente, mas eis senão quando começou a ouvir uns pequenos sons intermitentes: pokin-pokin.Voltando-se verificou, até onde os seus olhos enxergavam, que a sua mãe viera todo o tempo a quebrar pequenos pedaços de ramos que ia deixando cair, e perguntou-lhe: ‘Minha Mãe, porque fazeis isso com risco de vos magoardes?’

“Ao que a idosa lhe respondeu: ‘Para que, quando desceres esta montanha, não te percas nestas faldas e encontres o caminho que leva à aldeia. Ou julgas que sem estas marcas conseguirias orientar-te no regresso?’

“A consideração de que a sua mãe continuava, ainda e sempre, a pensar nele, e nunca nela, juntamente com a certeza da desumanidade do ato que estava a perpetrar atravessou-lhe o espírito e encheu-lhe o peito de uma profunda tristeza que lhe tolheu os passos. Depois de breve cogitação anunciou, baixinho, mas determinado: ‘Honorável Mãe, voltemos para casa.’

“Ela protestou: ‘Disparate, assim morremos os dois em vez de um. Seria também uma impiedade te entregares à morte antes de teres assegurado descendência aos nossos antepassados.’

“Ao que o filho lhe replicou: ‘Havemos de arranjar modo de vos fazer passar despercebida.’

“Regressaram, então, à aldeia, mas nela só entraram pela hora da ovelha [período entre a 1 e as 3 horas da manhã], quando todos dormiam. Nos dias seguintes, Yahei cavou no chão da casa um buraco onde a sua mãe se poderia esconder sempre que necessário. Conhecendo a sua piedade filial, os vizinhos não o incomodaram nesses dias, pensando que se tinha retirado para chorar o seu desgosto e assim permaneceram ignorantes do crime de Yahei e do risco que eles próprios corriam pela sua involuntária cumplicidade.

“Aconteceu que, por esse tempo, um outro dáimio, fronteiriço com o primeiro, mas mais poderoso que ele, procurava um pretexto para o invadir e lhe tirar o feudo e assim alargar os seus domínios. Um dia, enviou-lhe os seus emissários com a seguinte mensagem: ‘Saudações. É costume, entre bons vizinhos, a regular troca de presentes. A tua omissão deste ato de simples civilidade, deverei eu imputá-la a algum teu rancor para comigo? Como prova em contrário, mais não te peço senão que me envies uma humilde corda feita de pó.’

“Ao receber esta ameaça velada, o pequeno barão ficou perplexo com o pedido que lhe era feito. No entanto, querendo evitar o confronto, e não se encontrando corda tão fantástica nos seus territórios, expediu os seus serviçais, carregados de ouro, para Edo e Osaka, com a incumbência de procurar adquirir aquela rara manufatura nessas grandes metrópoles, onde se podem comprar todo o tipo de curiosidades que existem debaixo do céu. Passado algum tempo, regressaram com a notícia de que não havia comerciante, por mais opulento que fosse, que tivesse nos seus armazéns ou entre as suas mercancias, semelhante produto, quer fosse colhido da munificência da terra ou resultado do artifício humano. Enviou-os então a Nagasaki e Tsushima para indagar se tal corda se podia adquirir além-mar. Mais uma vez, o resultado foi negativo. Desesperando já de conseguir evitar a guerra e, assim, de manter reino e vida, o dáimio decidiu dar ouvidos a um antigo conselheiro de seu pai que propunha que se recolhesse a sabedoria do povo. Mandou então que o seguinte aviso fosse afixado em todas as aldeias e lugarejos, estradas e ruas:

‘Aquele que trouxer ao castelo senhorial uma corda feita de pó
será recompensado com cem koban de ouro.’

“Também Yahei leu esta notícia, e ficou tão perplexo como o castelão. Quando à noite comentou o assunto com a idosa, esta disse-lhe: ‘Não há nada de mais fácil: basta arranjar uma corda já dura e pô-la de molho em água muito salgada; depois, seca-se bem seca em cima de um estrado de madeira. Quando estiver bem seca, faz-se a arder, sempre em cima do estrado. A corda continuará corda, e com forma de corda, mas será uma corda feita de pó.

“Yahei não perdeu tempo em seguir as instruções da anciã e, ao fim de alguns dias, tinha uma corda de pó enrolada em cima de um estrado. Apresentou-se com ela ao dáimio que apreciou a ingenuidade do patego em produzir coisa nunca dantes vista, e se apressou a enviá-la com uma embaixada ao seu cobiçoso e malévolo e beligerante vizinho, em sinal, senão de amizade, pelo menos de paz. Yahei também recebeu o seu prémio que o tornou o homem mais rico em muitas léguas ao redor do seu lugarejo.

“Acontece que todos os pretextos são bons para os cobiçosos porem as suas mãos naquilo que não é seu. Assim, pelo ano novo, outra embaixada se apresentou em frente do daimio, que não queria velhos nos seus domínios, com a seguinte missiva: ‘Saudações. É costume imemorial a troca de presentes nesta quadra. Reparo, no entanto, que não tens pressa em cumprir este ato de cortesia básica. Deverei deduzir que o teu espírito está azedado comigo e que pretendes dar-me alguma lição? Para me provares que tal não é o caso, envia-me um bambu recurvado, atravessado transversalmente por uma linha.’

“Mais uma vez o dáimio temeu uma guerra que não podia vencer e enviou os seus serviçais a Edo e Kanazawa, à procura de um artesão que conseguisse passar uma linha pelo meio de um bambu recurvado. Mais uma vez os enviados regressaram desenganados pelos melhores artífices: tal coisa poderia ser feita por tengu, mas não pela indústria humana. E de novo foi tornado público um anúncio que determinava o seguinte:

‘Aquele que trouxer ao castelo senhorial
um bambu recurvado atravessado transversalmente por uma linha
será recompensado com cem koban de ouro.’

“De novo Yahei consultou aquela que já devia estar morta. E ela recomendou: ‘Basta besuntares com água de açúcar um dos lados de um bambu recurvado e no outro colocares uma formiga atada a um fio de seda. A formiga será atraída pelo doce aroma do açúcar e irá sair do outro lado com o fio.’

“Yahei apressou-se a seguir este conselho e, depois de produzir um bambu curvo atravessado por um fio de seda, apressou-se a levar este produto da sabedoria da idosa ao dáimio, que mais uma vez o recompensou.

“Pela terceira vez o dáimio vizinho enviou os seus mensageiros com uma mensagem: ‘Saudações. Manda a tradição que quando nasce um filho a um vizinho tal seja comemorado com uma dádiva ao santuário da sua divindade protetora. É notório que o santuário da divindade tutelar do meu filho ainda não recebeu a tua oferenda. Significará tal que não desejas a continuação da minha linha familiar? Para tornares público o teu desejo pelo bem-estar da minha família, envia ao santuário um tambor que toque sem ser batido.’

“Uma vez recebida esta mensagem, foi tornado público o seguinte anúncio:

‘Aquele que trouxer ao castelo senhorial
um tambor que toque sem ser batido
será recompensado com cem koban de ouro.’

“Yahei viu-o e voltou a consultar a sua mãe. E ela disse-lhe: ‘Basta pores uma dúzia de zângãos dentro de um tambor. Sempre que o tambor for abanado eles espantam-se e o tambor começará a tocar sem ser batido.’

“Yahei assim fez e, pela terceira vez, apresentou-se frente ao dáimio com o produto da sua indústria e do tino de sua mãe. Mais uma vez foi recompensado, mas, antes de ser despedido, uma dúvida atravessou o espírito do seu Senhor que lhe perguntou: ‘Foste tu que pensaste sozinho na corda de pó, no bambu recurvado atravessado por uma linha e no tambor que toca sem ser batido?’

“Yahei temeu, mas não mentiu, e honestamente confessou que tinha tido por conselheira uma velha que tinha boca que consumia e braços que não produziam. O dáimio, depois de considerar por um momento a resposta disse: ‘Se não fosse a sabedoria da tua Mãe, este senhorio teria sido destruído. Mais importante que os braços que produzem com a charrua, ou lutam com a espada, é o espírito de sabedoria que os move e os orienta.’

“E logo ali revogou a ordem de que os idosos fossem abandonados à morte nas montanhas. O seu vizinho deixou-o em paz, ele baixou os impostos e o seu reino prosperou.”

Porque será que nas histórias populares japonesas e chinesas, que envolvem governantes exploradores e corruptos, mas que têm um fim feliz com um governo humano e justo, terminam sempre com uma descida de impostos? Será que haverá alguma relação entre tirania e carga fiscal?

E porque será que as mesmas histórias populares fazem sempre uma relação entre baixas de impostos e prosperidade? Será o povo ignorante e palerma?

Outra questão: será que existe alguma relação entre a legalização da eutanásia, isto é, da legalização do assassínio de quem não paga impostos, mas consome recursos da Segurança Social, e o Orçamento de Estado?

Uma observação final: a moral popular japonesa considera, desde há séculos, que é legítimo, sábio e prudente desobedecer a uma lei desumana e injusta como a da eutanásia. Como será a moral popular portuguesa?

Professor de Finanças, AESE Business School