O modelo institucional da união política europeia (UPE) será sempre um modelo aberto e dinâmico de governação multiníveis, com geometrias variáveis conforme as áreas objeto de integração, em que os processos e procedimentos prevalecem e onde não há uma relação direta entre estrutura e resultado. A tese da governação multiníveis diz-nos que, à semelhança do federalismo cooperativo alemão e do federalismo dual americano, é tão ou mais decisiva a qualidade das ligações entre níveis de governo e administração do que manter o foco da reforma sobre o “transformador institucional”, ou seja, um enfoque excessivo na reforma das instituições europeias não se traduz, necessariamente, numa melhoria do modo de governação e resultados obtidos.

Num texto anterior (Covas, 2002, 245) afirmei que” toda a discussão à volta da reforma das instituições padece de um equívoco fundamental, qual seja, o de considerar, quase exclusivamente, o “transformador institucional” como o elemento central da reforma, relegando para plano secundário a qualidade democrática dos inputs e outputs utilizados e obtidos por esses processos de transformação”. Mais à frente, acrescentei” esta concentração excessiva nas instituições tem provocado ou pode vir a provocar alguns desvios perigosos: um sistemismo abusivo, a tentação unitarista, um neo-institucionalismo tecnoburocrático, uma normatividade supranacional excessiva ou um enviesamento procedimental induzido pela multiplicação dos policy-networks”.

Estas referências são importantes para perceber as dificuldades atuais do sistema político da União Europeia e para nos advertir de que é relativamente fácil presumir, convocar ou agitar o espantalho do federalismo burocrático para confundir os espíritos. Aliás, um bom exemplo desta tese, pela negativa, é a aposta falhada do projeto de tratado constitucional entre 2002 e 2005 no “governing” das instituições europeias, mais do que na “governance” ou governabilidade dos processos e procedimentos em que está constituída a União Europeia.

 União Política Europeia, uma tipologia dos modos de governação

O último quartel do século XX mudou, substancialmente, a natureza e o sentido da governação política. A relação política tradicional, vertical, entre o eleitor e o governante, deixou de ser monopólio do Estado e foi apropriada, de forma desigual, pelos vários corpos sociais. A economia e a sociedade organizam-se em grupos de pressão e atividade de lobbying tendo em vista influenciar e condicionar a administração política dos interesses. Os cidadãos eleitores organizam-se em sentido ascendente, a administração do Estado descentraliza-se e desconcentra-se em subsistemas funcionalmente diferenciados. No limite, temos um governo e uma administração constituídos em administradores de interesses, num sistema político aberto e caracterizado por uma pluralidade de interesses legítimos. As mudanças provocadas pela globalização e o regionalismo originaram uma redistribuição dos interesses por três níveis de governo e administração: o europeu, o nacional e o regional, se excluirmos, para tanto, o internacional e o local. Isto é, a governação estadual renova-se e acontece, agora, em mercado político de concorrência imperfeita com outras relações políticas, supra e infranacionais.

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Dito isto, vale a pena aprofundar um pouco mais a chamada “lógica consociativa”, aquela que se propõe conciliar a administração nacional dos interesses domésticos com uma específica determinação do interesse europeu, levada a efeito, em primeira instância, pela Comissão Europeia através das suas propostas. A tabela seguinte retrata uma tipologia dos modos de governação a partir da conjugação de dois elementos estruturantes: a lógica constitutiva da entidade política e o princípio constitutivo das relações sociopolíticas.

No primeiro elemento, trata-se de prosseguir um objetivo comum ou interesses concorrentes. No segundo, de formar um governo maioritário, supostamente mais eficiente, ou um governo consociativo, consensual, supostamente incompatível com a subordinação de uma minoria a uma maioria. A combinação dos dois elementos desemboca numa tipologia de quatro modos de governação: estatismo, corporatismo, pluralismo e governação em rede. Assim teremos.

  1. Estatismo: prossegue um interesse comum, uma vontade nacional, exterior aos interesses particulares, que só o Estado pode expressar adequadamente; a homogeneidade política e cultural permite basear um governo na regra da maioria, o discurso é adversativo, a maioria está no poder, a minoria na oposição, a alternância é a regra básica do sistema (a França, por exemplo);
  2. Corporatismo: prossegue um objetivo comum ou, melhor dito, a valorização dos interesses comuns; não há um interesse comum exterior aos interesses particulares, mas uma identidade de propósitos ou objetivos comuns que alimenta a coesão do sistema; um estilo tolerante de política consociativa conduz à formação de consensos alargados e valoriza a participação de todas as partes em presença (a Alemanha, por exemplo);
  3. Pluralismo: não existe a prossecução de um interesse superior, nacional, mas sim muitos interesses legítimos que têm, por isso, o direito de influenciar a governação, independentemente do governo que estiver em funções; isto é, não se confunde a legitimidade do governo eleito, maioritário, com a legitimidade pluralista dos vários interesses em presença (os Estados Unidos, por exemplo);
  4. Governação em rede: trata-se de fazer a governação política sem política governativa, isto é, sem política adversativa; as propostas da Comissão Europeia, por exemplo, funcionam como compromisso entre interesses concorrentes e as deliberações do Conselho como processo consociativo a prosseguir por duas vias: a Comissão pode sempre alterar a sua proposta durante o processo legislativo, o Conselho busca a unanimidade e o consenso mesmo quando tal não era necessário (a União como um networking state).

Na governação comunitária a Comissão Europeia é o pivot deste sistema consociativo e pluralista. Basta pensar nas suas várias vocações: proposição dos atos normativos, funções executivas, mas, também, funções de controlo e quase jurisdicionais. Além disso, ao criar várias audiências para as suas propostas desencadeia movimentos de reorganização dos interesses domésticos que são, na prática, outros tantos modos de fragmentação dos mesmos interesses. Isto é, a diferenciação pode conduzir à fragmentação. No final, temos um padrão governativo e administrativo de geometria variável em função da forma como os interesses segmentados se convertem em políticas públicas.

Já nos referimos, noutra altura, aos limites da representação de interesses de uma instituição consociativa (Covas, 2002). Por outras palavras, em que medida uma ideologia burocrática e tecnocrática, nos seus traços mais salientes, sai reconfortada e se legitima por uma representação de interesses que ela própria ajuda a configurar? Ao longo do policy-cycle encontramos inúmeros comités e grupos de trabalho, formais e informais, permanentes e ocasionais, que, no seu conjunto, constituem uma imensa rede de interesses corporativos, socioprofissionais, sociopolíticos e individuais, visando informar, sugerir, influenciar ou determinar o sentido e a natureza dos atos normativos e as decisões políticas da União. Como é óbvio, a instância racionalizadora de interesses, que é a Comissão Europeia, retira poder político próprio dessa faculdade superior que detém e, por essa via, reforça não só o seu poder de vigilância sobre a proposta inicial como, também, o seu poder específico de transação no jogo interinstitucional. Acrescente-se a instância consociativa COREPER (comité de representantes permanentes) e, bem assim, o procedimento de co-decisão e o comité de conciliação Parlamento-Conselho que alargaram ainda mais a vasta área de negociação consociativa.

A profusão de interesses ao redor das instituições, e da Comissão em particular, está na base de um mal-estar democrático que se acrescenta aos défices parlamentares já conhecidos, com origem, justamente, na falta de uma ligação forte entre o Parlamento Europeu e os Parlamentos Nacionais, não obstante os benefícios introduzidos pelo tratado de Lisboa. Em contraponto a este mal-estar suscitado por um “lobbying furtivo” junto da Comissão Europeia, assistimos, nas duas primeiras décadas do século XXI a um reforço do intergovernamentalismo (por exemplo, a criação do Conselho Europeu e do Conselho do Eurogrupo) e, muito claramente, a um reforço do diretório franco-alemão, o que só veio acrescentar e agravar o mal-estar democrático já existente.

Estes são os limites do modelo consociativo no plano comunitário: o lado furtivo da representação de interesses corporativos, por um lado, a oligopolização da representação política nacional, por outro. Se estes procedimentos revestem um carácter utilitário para a Comissão Europeia e os vários Conselhos, enriquecendo as suas propostas e decisões e reforçando o seu poder interinstitucional, também é certo que os parlamentos nacionais, a opinião pública, o capitalismo doméstico e as administrações nacionais reagem com suspeição a essa cumplicidade interinstitucional e político-burocrática. Obviamente, este crescente mal-estar democrático está fortemente correlacionado com a crise dos sistemas político-partidários e a emergência dos movimentos nacionalistas e populistas nos países da União Europeia.

Estado regulatório e governo das normas e regras

Do “Estado consociativo” ao “Estado regulatório” vai um passo. Pode, até, afirmar-se que são as duas faces da mesma moeda. De facto, quanto mais consociativismo e administração de interesses maior a necessidade de mecanismos e procedimentos regulatórios. Entre a norma e a escolha (Fitoussi, 2002), entre o mercado e a democracia, entre o princípio económico e o princípio político, instala-se o modelo regulatório europeu e o governo das normas e regras. Os seus mais fiéis depositários, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, detentores do poder orçamental e regulamentar e do poder monetário, respetivamente, mas, também, outros organismos nascidos “fora dos tratados” como é o caso, por exemplo, de “mecanismos e autoridades” muito diversos de que o “mecanismo de estabilidade europeu” é o mais conhecido.

Num número crescente de casos, temos cada vez menos governação política independente e cada vez mais governabilidade socio-burocrática, como se houvesse uma espécie de acordo tácito entre a governação consociativa e a legitimidade funcional das instituições independentes, como o Banco Central e a Comissão Europeia. Regulamentos e decisões do BCE, regulamentos e decisões da Comissão Europeia, e muitas outras instâncias da União Bancária, por exemplo, eis o universo regulatório em funcionamento, muito mais eficaz do que a “produção política” do Conselho ou do Parlamento Europeu. Com uma vantagem adicional, a saber, a atividade de regulamentação e regulação, liberta da restrição orçamental, é um “ótimo instrumento” de compromisso político. Recordemos as razões mais importantes que conduziram ou estão na base de uma crescente atividade regulamentar e regulatória:

  1. A crescente complexidade e tecnicidade das decisões públicas;
  2. O insucesso das políticas intervencionistas e a necessidade de regular as privatizações;
  3. A hostilidade crescente da opinião pública face a certas políticas clientelares;
  4. A dependência das políticas públicas das contingências do ciclo eleitoral;
  5. A incapacidade do Estado-Providência para cumprir satisfatoriamente as suas obrigações;
  6. A independência e a continuidade das políticas públicas face à sucessão de gabinetes ministeriais;
  7. A proteção do cidadão e do consumidor face à contingência e ao arbítrio burocrático;
  8. O impacto crescente da regulação supranacional por via do mercado único e da moeda única;
  9. O impacto crescente da regulação internacional e dos regimes internacionais, como consequência da globalização.

Como é óbvio, estas razões têm expressões nacionais diferenciadas de acordo com a tradição político-administrativa, as preferências e as políticas em matéria de utilities, o intervencionismo económico, o papel dos grupos bancários e financeiros, as formas de tutela político-burocrática, etc. Destas diferentes composições nacionais decorrem, também, os riscos e as deficiências inerentes à atividade regulatória, por exemplo:

  1. A captura dos gestores públicos por diferentes grupos de interesses;
  2. A excessiva dependência do orçamento geral do Estado;
  3. As falhas de coordenação e os custos de transação da política económica;
  4. O excesso de cumplicidade clientelar;
  5. O interesse público difuso e a sua inorganicidade;
  6. As falhas de responsabilidade política face aos Parlamentos e Tribunais.

Seja como for, não deveremos esquecer a luta política subjacente ao processo regulatório. Isto é, não podemos pretender que as características estruturais e comportamentais das autoridades reguladoras (independência, competência e responsabilidade pública) se substituam ou subtraiam à relação de forças existente entre os interesses em presença. No plano europeu, da União como Estado-regulatório, as razões que justificam a atividade de regulação são conhecidas, já que a auto-regulação interestadual não provou o suficiente. Com efeito, a globalização, o mercado único e a moeda única fizeram disparar a atividade regulatória europeia, mesmo que nem todas as entidades constituídas sejam organismos de regulação em sentido estrito.

No plano europeu, as críticas de fundo ao processo regulatório são recorrentes: excesso de poder discricionário, falta de responsabilidade perante os parlamentos, insuficiente controlo judiciário, reduzidas garantias procedimentais, pouca participação do público, para além do habitual secretismo de burocracias permeáveis apenas para alguns. Bastaria lembrar os procedimentos de comitologia (Covas, 2002) para ilustrar o complexo relacionamento do triângulo interinstitucional em matéria regulatória. Assim, os sucessivos acordos de cavalheiros entre o Parlamento e a Comissão são a prova material de um défice de controlo parlamentar do processo regulatório que, entretanto, evoluiu positivamente com o alargamento das situações de deliberação por codecisão.

A União Política Europeia: que rearranjo institucional? 

O “Estado consociativo e regulatório” da União tem os limites inscritos na sua própria natureza. A lógica compromissória e a segmentação continuada dos padrões de governo e administração, convertidas em outras tantas políticas públicas, conduzem, rapidamente, ao seu congestionamento e saturação. No limite, a pretensão do “Estado consociativo e regulatório” da União seria substituir a escolha pela norma. Fazer a política sem o político. Governar sem governo. Todavia, ele abeira-se de uma verdadeira encruzilhada onde são já visíveis os limites do Estado-funcional que marcou o primeiro meio século de construção europeia.

O momento atual é muito complexo. Depois da crise das dívidas soberanas e bancárias, ainda não inteiramente resolvida, estamos novamente numa conjuntura crítica com clivagens políticas muito vincadas de que o Brêxit e os movimentos populistas são os exemplos mais eloquentes. Independentemente do que acontecer, devemos, agora, tomar o distanciamento da razão histórica e dizer, mais uma vez, sem receio de errar, que:

  1. A história política europeia é muito diversa e alimentará, ainda, muitas perspetivas concorrentes sobre políticas constitucionais e institucionais;
  2. A União Europeia, como entidade política, está, ainda, na fase formativa ou constitutiva; a sua natureza e, mesmo, finalidade política, são, ainda, contestadas;
  3. O alargamento ao centro e leste europeu corresponde a uma pulverização, ainda maior, dos padrões governativos e administrativos em vigor, podendo, por outro lado, abrir a via a novas cooperações reforçadas em reação, justamente, aquela pulverização.

De acordo com a teoria dos pequenos passos e numa linha de argumentação mais pragmática, de mais processo e procedimento do que ordem e estrutura, a ideia de União Política Europeia (UPE) talvez possa caber nas duas formulações institucionais que apresento:

Legenda: COM (Comissão Europeia), CE (Conselho Europeu), CM (Conselho de Ministros), PE (Parlamento Europeu), TJE (Tribunal de Justiça Europeu), UPE (União Política Europeia).

Estas duas abordagens assentam em alguns princípios de ordem geral, a saber:

  • A União Europeia é uma associação livre e voluntária de Estados nacionais, subordinada aos princípios do governo limitado e das atribuições subordinadas (princípio de subsidiariedade);
  • É tão ou mais importante aprofundar as “ligações horizontais” com os parlamentos nacionais e as administrações nacionais do que criar uma segunda câmara no parlamento europeu ou aumentar o labiríntico burocrático do transformador institucional europeu (Corporativismo Burocrático Europeu);
  • É tão ou mais importante aprofundar os direitos de participação e controlo político de resultados do que criar uma normatividade supranacional excessiva (mais democracia participativa e reconhecimento mútuo de legislação); não há união política europeia sem um bom sistema de responsabilidade pública e um bom regime de contraditório (a procuradoria europeia, a prevenção do free raider e moral hazard e o combate contra a evasão fiscal e financeira);
  • Na economia da representação político-simbólica uma cidadania outorgada não é suficiente para mobilizar a “cultura afetiva e a afeição quotidiana” dos europeus; faltam instrumentos inovadores de comunicação sociopolítica para levar a bom termo a constituição de um espaço público especificamente europeu (a construção de uma república dos cidadãos e de uma sociedade colaborativa dos bens comuns europeus).

Esta perceção do problema diz-nos ou recomenda-nos que haja maior diversidade nos “inputs” transmitidos ao executivo e ao decisor e, do mesmo modo, maior diversidade dos “outputs” transpostos para os recetores, pelo que o agente-principal deverá, sempre que possível, ser munido de um mandato dual e ser portador dessa diversidade de problemas e soluções. Assim, os primeiros-ministros e ministros em Conselho já possuem mandato dual, os deputados poderiam tê-lo numa próxima cooperação interparlamentar, os conselheiros também numa futura rede do conselho económico e social europeu e os administradores europeus, igualmente, na futura rede europeia de administração pública.

Em conjunto, deverão todos contribuir para a politificação de um novo espaço público europeu, não apenas no interior das instituições europeias, mas, sobretudo, nas articulações destas com as instituições nacionais e regionais dos Estados membros respetivos numa estrutura de governação em rede.

Notas Finais

Para lá da duplicidade estrutural do princípio de subsidiariedade, uma via com dois sentidos, e acerca deste objeto politicamente não identificado que é a União Europeia, a questão mais interessante, doravante, parece ser esta: em que medida a politização crescente da União Europeia acabará por sacrificar a instituição Comissão Europeia e por efeito colateral o próprio método comunitário, seja no sentido da sua governamentalização, da sua parlamentarização ou de uma composição a dois peculiar e sui generis. No centro desta fragilidade comunitária está a turbulência política recente e o colapso dos partidos clássicos europeus, com todas as contradições que conhecemos acerca da emergência de movimentos e partidos nacionalistas, protecionistas e populistas. As eleições para o Parlamento Europeu em maio próximo determinarão o alcance e o significado político do projeto europeu. Por isso, não surpreende, também, que outras “vias secundárias” tenham sido sacrificadas, como são, por exemplo, o regulamento uniforme para as eleições europeias, as listas europeias de candidatos, o aprofundamento das formas de democracia direta, o desenvolvimento da democracia participativa, novos espaços públicos de cidadania europeia, a legitimidade ativa dos parlamentos nacionais, etc. Estamos, claramente, em compasso de espera, numa enorme expetativa e um nervosismo indisfarçável, enquanto aguardamos pelos dois “day after”, o dia 29 de março, a saída do Reino Unido, e o dia 26 de maio, o dia das eleições para o Parlamento Europeu.

Universidade do Algarve