O primeiro concurso aberto com verbas do âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), simbolicamente para formação no ensino superior, denominado Impulso Jovens STEAM (Science, Technology, Engineering, Arts and Mathematics) e Impulso Adultos, não parece augurar o melhor futuro.

O ensino superior tem dois subsetores quanto às entidades proprietárias, um é estatal, o outro privado. Um vive ancorado no Orçamento do Estado (OE), o outro é financiado pelos estudantes e suas famílias. E não é despiciendo pensar que quem estuda no privado paga a sua quota parte de impostos para financiar a educação estatal, pagando, assim, duas vezes.

Também importa reter que as instituições privadas de ensino superior são reconhecidas como tendo utilidade pública, naturalmente porque prestam um serviço público equivalente às estatais, são obrigadas a cumprir os mesmos parâmetros de qualidade, estão permanentemente sujeitas aos ditames do Estado, muitas vezes pouco preocupado em aferir se as suas deliberações se compaginam com a sustentabilidade de todas elas, mas não são reconhecidas pelos poderes públicos em pé de igualdade com as suas congéneres estatais, como seria de esperar, pois um governo não existe para governar o Estado, mas sim o país, devendo reconhecer a todas as instituições de ensino superior (IES) acreditadas e licenciadas, independentemente dos proprietários, condições semelhantes de acesso a fundos públicos e concursos, nomeadamente os que estão para além dos financiamentos garantidos pelo OE.

Atentos os objetivos deste primeiro concurso na esfera do PRR, seria legítimo esperar que tivesse havido consulta prévia às IES sobre os princípios gerais a que o mesmo devia obedecer, não para definir a estratégia a seguir, isso compete ao Governo, mas para que o concurso permitisse incorporar visões diversas que salvaguardassem a possibilidade de uma concorrência transparente entre todas, fossem estatais ou privadas.

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Se houve consultas a IES do Estado, não foram reveladas, mas a privados seguramente não se verificaram, e o concurso até parece ter sido feito “com fotografia”, expressão crítica utilizada quando se realiza um concurso e se estabelecem critérios tão específicos que só podem ser preenchidos por pessoa ou organização muito concreta.

Mas se a forma como o concurso foi organizado já levanta dúvidas, como se pode compreender que no momento em que o mesmo foi lançado já existissem várias IES estatais perfeitamente organizadas nos termos previstos no aviso de abertura, cujos requisitos a cumprir era suposto serem confidenciais, que tornaram públicos documentos para apresentar em sede de candidatura que pressupõem meses de preparação?

E o calendário de apresentação a concurso que decorre entre agosto e setembro, meses fatídicos para exigências acrescidas às instituições, com a maior parte do país parado, obrigadas a elaborar documentos complexos, estabelecer parcerias múltiplas, recolher dezenas de assinaturas?

Como diz o ditado “candeia que vai à frente alumia duas vezes”, é o caso, quando umas IES estatais já tinham o trabalho de casa feito na altura da apresentação do programa, ainda as privadas estavam no escuro. Quem as informou? É a pergunta para um milhão de dólares. E era muito útil conseguir uma resposta. Já agora, era interessante saber se todas as IES estatais foram informadas, se apenas as de um qualquer inner circle de influentes, se foi uma fuga de informação ou uma ação deliberada. Tantas perguntas para um silêncio que se adivinha como resposta.

O painel que vai avaliar as candidaturas foi constituído sem qualquer consulta à associação que representa as IES privadas e, sem colocar em causa a honorabilidades das pessoas que o compõem, é imperativo reconhecer que seria bastante mais democrático e transparente se todas as associações representantes das IES estatais e privadas (CRUP, CCISP e APESP) tivessem sido ouvidas e pudessem ter expressado os seus pareceres.

Outra preocupação decorre de um eventual concurso para a criação de residências para estudantes do ensino superior, prestes a abrir, ao que se diz, mas cujos termos parecem ser do conhecimento de algumas IES estatais que já desenvolvem ações concretas visando assegurar as melhores condições para esse concurso, sem que as IES privadas tenham tido qualquer informação ou sido consultadas.

Se há matéria onde as IES têm especiais responsabilidades de imparcialidade é na abertura de concursos, e o mesmo se deve aplicar a todos os organismos quando estão envolvidos fundos públicos, não sendo legítimo que o Estado para financiar IES que são sua propriedade não seja imparcial e não confira às entidades privadas os mesmos meios e reconheça os mesmos direitos que àquelas.

A chamada “bazuca” começa mal, circunstância que não pode ser imputada à qualidade da arma, mas à errada pontaria de um qualquer apontador, e havendo dúvidas e fundadas suspeitas de que algo não correu bem e pode vir a correr ainda pior, se os procedimentos não forem os mais adequados, era oportuno, tendo em consideração que há um desejo generalizado de que este processo seja transparente e amplamente escrutinado, que as entidades a quem compete auditar e fiscalizar a utilização dos fundos do PRR e a forma como os concursos para a sua afetação se processam, iniciassem já a sua missão.

Com razão ou sem ela, já se começou a instalar a ideia de que o processo vai ser um “salve-se quem puder” e que a máquina estatal vai aproveitar para se robustecer por via do PRR e assim obter os fundos que escasseiam vindos do OE, aproveitando para tal as cumplicidades dos corredores do poder, a informação privilegiada, que noutras áreas é crime, a influência partidária e os interesses comuns autárquicos.

O que o País precisa é de uma “bazuca” que permita assegurar mais desenvolvimento, que melhore as qualificações dos/as portugueses/as e assegure o progresso generalizado de todos os setores. E para isso é necessário que não fique ninguém para trás, que não fique ninguém de fora, para que no fim do caminho não venhamos a descobrir que o Estado engordou e tudo o mais se manteve ou definhou.

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