O século XX é um período fértil em criação literária distópica, provavelmente como contraponto às raízes utopistas plantadas no século anterior. Perante as promessas do novo mundo, os intérpretes mais perspicazes do espírito do tempo intuíram os seus perigos e escreveram sobre as suas possibilidades mais assustadoras. É o que acontece com a obra que terá sido concluída há cerca de cem anos e terá inspirado Admirável Mundo Novo e 1984: Nós, do escritor russo Evgueni Zamiatine.

A supremacia da razão e a fé na ciência, a organização científica da vida e da sociedade, as estratégias de controlo mental, a obsessão com a igualdade, o mundo natural que deve ficar para lá dos nossos muros – todos estes aspetos constituem elementos da sociedade imaginada por Zamiatine e revelam os perigos da crença dogmática em projetos políticos prescritivos. Mas a imagem mais forte do livro talvez seja a das casas de vidro, que transformam toda a vida pessoal e privada em uma vivência de mútua observação e controlo. O mesmo é dizer, de vigilância.

A imagética de Zamiatine resulta, naturalmente, da sua experiência pessoal com os ideais comunistas e as consequências da revolução bolchevique na Rússia, mas anuncia uma mais ampla dissolução de um dos pilares fundamentais do paradigma liberal moderno, continuamente erodido ao longo do século XX. A separação entre esfera pública e esfera privada, entre aquilo que importa para a discussão coletiva dos assuntos comuns e aquilo que diz respeito apenas à nossa intimidade e privacidade, numa erosão progressiva que resulta de se ter instalado nas nossas sociedades uma cultura de vigilância.

Em Porque está a falhar o liberalismo?, Patrick Deneen aponta as razões para uma tal cultura nos fundamentos éticos que deram origem ao projeto moderno e ao paradigma liberal. O individualismo moderno, que recusa a virtude dos antigos e pretende libertar os indivíduos de todas as autoridades, “gera anomia social e requer a expansão da segurança jurídica, proscrições policiais e mais vigilância.” O cultivo aristotélico do caráter e a autodisciplina foram descurados como paternalistas e opressivos e, por essa razão, “cada vez mais administrações escolares do país instalam agora câmaras de vigilância nas escolas”. A libertação do indivíduo terá, de acordo com este argumento, fragilizado a dimensão de caráter individual, o que conduz a uma desconfiança permanente face ao comportamento do outro. E basta pensar em todas as soluções imaginativas e eticamente questionáveis que foram adotadas nas universidades portuguesas para vigiar os estudantes durante as avaliações à distância no último ano, para percebermos a ideia de Deneen.

Shoshana Zuboff, em A Era do capitalismo da vigilância, aponta o dedo a uma nova forma de capitalismo que, assente nas grandes empresas de Silicon Valley (Google, Microsoft e Facebook), estaria a transformar radicalmente as nossas vidas e o próprio sistema capitalista. Esse capitalismo da vigilância utiliza-nos como “objetos de uma operação de extração de matérias-primas tecnologicamente avançada e progressivamente inevitável”, a partir do qual “pagamos a nossa própria submissão”. Mas talvez o pior seja a disponibilidade acrítica com que nos subjugamos: adquirimos voluntariamente equipamentos domésticos smart que vão proliferando nas nossas casas, sentimo-nos bem ao expor todos os aspetos desinteressantes das nossas vidas nas redes sociais, deixamos que os telemóveis guardem a localização de todos os nossos movimentos.

O que Zuboff optou por menosprezar é o perigo que se encontra igualmente nos Estados de vigilância, que não param de crescer. Tal como o sapo que, colocado numa panela de água ao lume, não se apercebe do que lhe vai acontecer, também nós fomos sendo preparados para casas de vidro e vidas transparentes por uma cultura de vigilância. Fomos aceitando sem reclamar o controlo e verificação das nossas contas bancárias, passamos a dar diligentemente conhecimento ao Estado de todas as compras que fazemos, pagamos tudo com cartão de multibanco ou aplicações no smartphone e aceitamos a proliferação de câmaras de reconhecimento facial. Por causa da pandemia (que tem acelerado todas estas tendências), alegramo-nos com a ideia de um certificado verde digital, aceitamos que se proponha o voto eletrónico nas próximas eleições autárquicas e vamos deixando que se fale na eliminação do dinheiro físico.

E enquanto os cidadãos da União Europeia estão distraídos com a crise pandémica, a Comissão Europeia apresentou uma proposta para o controlo das comunicações digitais. De acordo com a medida que está agora em consulta pública, as empresas de comunicação digital deverão implementar ferramentas capazes de fiscalizar tudo aquilo que escrevemos on-line (desde publicações nas redes sociais a conversas no chat) como medida de combate ao abuso infantil. Patrick Breyer, membro do Parlamento Europeu, desconstrói a razoabilidade da medida aqui, mas toda a história da União Europeia é prova da sua fecunda irrazoabilidade. Adivinha-se, por isso, mais um passo no aprofundamento da cultura de vigilância, com a União Europeia a fazer alegremente o caminho para aquilo que, no âmbito da teoria política, se convencionou chamar totalitarismo.

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