A ideia vulgarmente aceite da despesa pública, e posterior reembolso por via de impostos, enquanto instrumento de distribuição de riqueza parece ter esbarrado na crueza dos números. Sabendo nós que os funcionários do estado e os funcionários das várias empresas de transportes podem agradecer a recuperação do poder de compra, os demais cidadãos não têm notícias boas, apesar de um ano em que trabalharam bastante, e bem, para o consumidor estrangeiro. A dívida pública, o chamado algodão que revela a poeira que vai assentando sobre os demais indicadores do estado e do país, essa teve um crescimento de mais de 9,5 mil milhões de euros.

Uma mera conta de merceeiro dirá que se o estado tivesse pedido este dinheiro para distribuir pelos 600 mil desempregados, caberia a cada um 1130 euros, com subsídio de Natal e de férias. Podemos até dizer que o estado investiu na recuperação do emprego e dividir os 9,5 mil milhões pelos cerca de 110.000 desempregados que saíram das estatísticas, o que daria uma remuneração de administrador de banco para cada um. Ainda que acreditemos que o estado serve para favorecer os mais pobres, parece-me favorecimento a mais. Agora, não tenhamos a menor dúvida, os 9,5 mil milhões entraram mesmo na economia portuguesa, não pensem que os juros são muito relevantes nas contas porque são sensivelmente os mesmos dos anos anteriores. Pode ter sido rápido a sair, mas esse dinheiro todo entrou e entrou sem que os 600 mil desempregados o tivessem visto.

O exercício de dividir o aumento de dívida pública pelos desempregados, por estúpido que possa parecer, é perfeitamente possível e espero que no fim deste texto percebam porque é essa a única forma do dinheiro chegar de facto a quem precisa. Senão vejamos, todas as formas de o estado gastar dinheiro, passam por pessoas que prestam um qualquer serviço ao país intermediado pelo estado. Os professores recebem um salário para ensinar, os médicos para curar, etc. Aquilo que as pessoas mais necessitadas recebem não é dinheiro, é o serviço. O dinheiro, esse, vai para os professores e médicos que receberam ao longo da vida a capacidade (o capital) de prestarem esse serviço. Quando ouvimos que o estado vai investir numa ponte, esse investimento dirige-se, em primeira mão, a quem tem alvará para construir pontes, participar em concursos públicos com todos os custos que isso tem, etc. Nenhum desempregado vai ter acesso à construção da ponte, a não ser que se torne carregador de baldes de cimento no fim da cadeia com o dinheiro que sobra depois de promotores, engenheiros, empreiteiros, bancos, terem tirado a sua fatia do investimento.

Intuitivamente, não é complicado perceber que os que eram mais qualificados, os que tinham mais capital à partida, vão ficar ainda mais ricos que aqueles cujos capitais não serviam para terem rendimentos. Aquilo a que chamamos normalmente de investimento público não torna a sociedade mais igualitária no imediato. Pelo contrário, torna-a mais desigual. Como, aliás, qualquer desempregado que tenha feito as contas aos 9,5 mil milhões já percebeu. A parte não financeira do investimento público é a que vai chegar aos mais pobres, como a capacidade de passar por cima de ponte, de ter serviços de educação de jeito e de saúde a tempo. Isto, se aproveitado pelos mais pobres, pode servir de capital para um dia acederem ao bolo, mas no imediato não é para eles.

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A forma mais direta de vermos isto é a salvação dos depositantes dos bancos. Quando o estado vai pedir emprestado para “salvar um banco”, não vai salvar acionistas porque estes perdem tudo; não vai salvar os gestores porque vão para a rua; nem salvar os empregados porque são despedidos ou têm cortes profundos nos vencimentos. Vão salvar os depositantes. Cujo proveito é tão grande quanto o volume de dinheiro que têm depositado. Isto é, o dinheiro do estado vai ser distribuído proporcionalmente à riqueza dos depositantes.

Do ponto de vista da física do problema, a coisa é relativamente mais complicada. E tudo começa no fim do séc. XIX, início do séc. XX (como tudo o que é importante) quando um economista italiano, de seu nome Vilfredo Pareto, mediu a distribuição de riqueza na sociedade italiana. Reparou Pareto que a percentagem de pessoas ricas é muito menor que a percentagem de pessoas pobres, que 80 por cento da riqueza estava nas mãos de 20 por cento das pessoas e que 80 por cento das pessoas tinham 20 por cento da riqueza.

Certamente que quem me está a ler já leu, e releu, notícias de estudos semelhantes com percentagens diferentes e ficou chocadíssimo com a diferença. A verdade é que não é defeito, é feitio. Uma economia, isto é, o sistema de trocas com necessidades infinitas com que o Homo sapiens vive, gera por si essa distribuição. E mais, ainda que se tente mudar a distribuição – e ela muda temporariamente com crises, catástrofes, etc. – ela mantém-se mais ou menos constante na forma e desloca-se no sentido positivo do eixo do valor da riqueza. Por outras palavras, toda a gente fica mais rica, mas os mais ricos ficam muito mais ricos que os mais pobres, sendo que essa diferença vai crescendo com o tempo.

Portanto, ainda que o estado se disponha a gastar dinheiro para fazer dos pobres mais ricos, o que vai acontecer é que esse dinheiro será sempre para quem tem mais capital (incluindo instrução, saúde, alvarás, etc.). Ainda que os pobres fiquem mais ricos em termos absolutos, o que vai acontecer é que os ricos ficarão muito mais.

Voltemos então aos 9,5 mil milhões de euros e imaginem que os gastávamos diretamente nos desempregados, ou seja, cada um levava para casa 1130 euros por mês, só porque sim. Aquilo que ia acontecer é que os desempregados iam gastar o dinheiro naquilo que precisam. Comida, casa, saúde, etc. No dia seguinte, novamente, o dinheiro já estaria em quem tem o capital porque é quem consegue produzir os bens e os serviços que os (originalmente) desempregados consomem. Novamente, ainda que o dinheiro chegasse diretamente, o que aconteceria seria, outra vez, a multiplicação do capital. Mas pelo menos neste caso, os desempregados viam o dinheiro.

Então, o que este tipo está a dizer é que o estado não serve para nada? Não. O estado serve para levar serviços altamente qualificados e de valor elevadíssimo às pessoas independentemente da sua condição social. Serviços como educação, segurança e saúde para os quais são necessárias décadas de formação dos funcionários que os prestam para que estes serviços tenham qualidade suficiente. Mas é aqui que as nossas dificuldades financeiras perdem o nexo. O custo de todos estes serviços é, na sua esmagadora maioria, o salário de trabalhadores portugueses. Excluindo os medicamentos e a maquinaria da saúde, o estado só precisava de gastar aquilo que seria um salário (bruto) compatível com todos os outros trabalhadores para que, financeiramente, não houvesse qualquer problema.

Agora, seria interessante que se fizesse a publicação do que foi gasto, onde e como. Como é um montante que dava para meter todos os desempregados em casa com 1130 euros por mês, é gasto sem que isso traga nada de relevante para os mais necessitados. Sabendo nós que as coisas relativas ao estado português nunca são lineares, seria interessante perceber em que curvas se gastou esse dinheiro todo.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer