Não tenho escrito opiniões nos últimos meses. Não foi por falta delas. Nem, tão pouco, por ausência de temas relevantes. Senti que não teria nada a acrescentar no que foi sendo escrito sobre as dificuldades do SNS. Sendo assim, tive a noção de que a minha participação no debate em cima dos acontecimentos não traria nada de importante, nem seria suficientemente maturada para permitir uma reflexão de quem a lesse. Entretanto, algum tempo passado e numa fase em que é precisa muita serenidade para afrontar os problemas do futuro próximo, julgo que se justifica voltar a escrever sobre política de saúde. Sou suficientemente realista para perceber que os meus juízos interessarão a muito poucos, mas acho que podem ser uma ajuda para a sistematização dos problemas e encontro de soluções.

Não é porque a Senhora Ministra da Saúde se demitiu que volto a este jornal. Durante as próximas semanas irei, se a direção editorial do Observador me puder facultar o espaço, debruçar-me sobre alguns dos acontecimentos mais recentes do SNS. Mas a demissão da Dra. Marta Temido é o tema incontornável por onde devo começar.

A primeira nota é pessoal. Desejo à Dra. Marta Temido as maiores felicidades pessoais e profissionais. Estou grato por tudo o que fez, acima de tudo por ter dado o melhor de si ao ministério, seguramente com coisas boas, menos boas e até algumas más. Em momento oportuno defendi a tese de que não deveria ter aceitado continuar para segundo mandato. Poderia ter saído em “alta”. Entendeu que deveria continuar. Não foi egoísta, mas enganou-se ou foi enganada. Enganou-se na avaliação que fez das suas capacidades, das suas condições políticas, do apoio que receberia do primeiro-ministro, do PS e, o mais relevante, do suporte que teria junto do pessoal do SNS com quem não soube sempre lidar da melhor maneira. Poderá ter sido enganada por quem lhe garantiu muito mais do que lhe deu, por quem não a soube aconselhar e contrariar, por manobras tão canhestras como a de a fazer acreditar que um dia poderia ser líder do PS e candidata a primeira-ministra. Em política, cada um acredita no que quer acreditar e paga o preço das crenças que assume. São raras as histórias de ministros da saúde que acabam bem. Nem todos podem ser Paulo Macedo.

Do ponto de vista político, a saída da ministra em exercício pode não ter consequências. Como é hábito dizer-se, é preciso mudar de políticas e não apenas de ministros. Digamos, sem tibiezas, que precisamos de mudar de governo. Mas isso não será para tão cedo e temo que tudo fique como está… mal. Até lá, o PS tem, estou certo, pessoas capazes de governar a saúde. O problema será, neste momento, voltar a encontrar alguém que se deixe enganar ou seja absolutamente dedicado à causa pública. O próximo ministro da saúde será mais uma cabeça na máquina trituradora da João Crisóstomo, salvo se lhe forem dadas as condições políticas, instrumentais, operacionais e financeiras, para a governação da saúde. Era claro que a ministra cessante não as tinha. A saúde não é prioridade política, como se depreende do OE e do PRR, os instrumentos de governação estão ultrapassados e a mais recente legislação sobre o SNS apenas torna tudo mais difuso, menos responsabilizante e enormemente complexo. Acresce que as questões de acesso a cuidados, dada a recusa absoluta de partilhar a prestação do SNS com privados e setor social, se tornaram quase irresolúveis. A operação do SNS está ainda totalmente dependente dos serviços de urgência e as carências estruturais, em termos de edificado, equipamento e pessoal, são gigantescas. A demografia da população, passe o pleonasmo, não favorece. A dos profissionais é um susto. O “imperativo” da inovação tecnológica não tem sido encarado de forma efetiva. A governação da saúde tem sido feita por impulso, pela resolução de episódios e crises pontuais nos media e não no modus operandi. Há dinheiro, mas pode não ser ainda o suficiente e seguramente tem sido mal alocado e mal gerido. Em suma, o problema da saúde é um problema de governance, muito mais do que um problema de gestão.

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Quem suceder à Dra. Marta Temido encontrará um sistema de saúde muito assimétrico, penalizador para quem o usa, os que não podem pagar seguros extra ou estão demasiado doentes, e para quem o paga, os mesmos que pagam impostos e não usam o SNS que financiam, porque contratam seguros e planos para assistência no setor privado. Terá que se ajustar à legislação que, entretanto, foi criada e viver com os nomeados da confiança da Dra. Marta Temido. Nada que não se resolva com inteligência e boa educação, coisa que vai faltando na política nacional. É sempre assim nas transições de ministros e governos, mas pode ser evitado ou minimizado. Fica claro, a fazer fé nas notícias, que a insistência do primeiro-ministro em deixar à ministra cessante a tarefa de elaborar a regulamentação dos estatutos do SNS e, quiçá, nomear o futuro diretor executivo, é um disparate político que condiciona o próximo titular da pasta da saúde e revela uma falta de discernimento político que não seria de esperar do primeiro-ministro. Seria mais honesto reconhecer que não sabe como substituir a Dra. Marta Temido.

É imperativo que a população não perca a confiança no SNS. Em boa verdade, apesar de todos os sinais apontarem para o contrário, o panorama geral do estado de saúde da população não é tão mau como possa parecer. Mas também não é tão bom como nos querem fazer acreditar. Afinal, o êxito no combate à COVID-19 ficou longe, em termos de mortalidade e novos casos, da propaganda oficial. Há uma nuvem que se instalou sobre as estatísticas – mortalidade geral, mortalidade materna, mortalidade infantil, p. ex. – e a sua interpretação que não pode ser rapidamente resolvida, o que não ajuda quem governa. O preço sistémico do combate à pandemia não deveria ter sido ignorado, nem escondido. A desconfiança que se foi instalando leva a que haja casos em que a suspeita de má prática fica a pairar, mesmo que posteriormente infirmada. Não se devem confundir casos com a realidade geral, mas o todo também é a soma dos casos. Há falhas, riscos clínicos e efeitos adversos que, provavelmente ainda bem, são discutidos na praça pública. Têm de ser investigados, esclarecidos e as conclusões tornadas públicas. Não se pode continuar a mascarar as falhas com a tradicional procura do bode expiatório, sem olhar para os reconhecidos “problemas estruturais”.

O próximo ministro da saúde precisará de capacidade negocial e de autoridade. Dar-se ao respeito e ser respeitado. Tem de delegar mais e, para isso, há dirigentes que terão de ser substituídos. Estão cansados e nós deles. Terá de poder resolver carreiras e salários, com a máxima urgência, para estancar a perda de profissionais no SNS. Mas também será bom que os profissionais percebam que são parte do todo e, como tal, não podem só declarar que “não se responsabilizam” para que tudo fique bem para eles e para quem devem servir. Tem de haver diálogo construtivo entre todos os stakeholders da saúde. São muitos. Precisará de corrigir as avarias, sim, as coisas que ninguém conserta, e os defeitos estruturais que teimam em não ser resolvidos. Há hospitais que têm de ser construídos. Não poderá continuar a fugir de avaliações contínuas, transparentes, relevantes, informativas e consequentes da qualidade dos serviços prestados. Está obrigado a mudar o paradigma assistencial do SNS, ainda centrado nos serviços de urgência.  Não poderá confiar em sondagens de popularidade para daí tirar conforto. Nem sempre as decisões certas são as mais populares. Deverá falar quando tiver alguma coisa para dizer, honesta e convincentemente, e estar calado quando for caso disso. Toda a estratégia de comunicação do ministério da saúde e das suas agências tem de ser revista.  Necessitará de tempo que não terá. E o inverno ainda será pior do que o verão está a ser.

A boa notícia é que o SNS ainda tem potencialidades que podem ser maximizadas. Tem gente boa e muito competente que não merece ser avaliada para o lado que o vento sopra. Tem tecnologia única e instituições que teimam em querer ser de referência. A margem de manobra do governo, paradoxalmente com maioria absoluta na AR, é estreita. Conviria que não a desperdiçassem. Mas já não tenho grande esperança.