Está aí, no espaço público, através dos respetivos membros do governo, o roteiro da neutralidade carbónica 2050 (RNC) e o plano nacional da energia e clima 2030 (PNEC). Pela importância nuclear de que se revestem na reorganização da economia, pelo volume de investimentos que mobilizam na próxima década, pelo lugar central que irão ocupar nas políticas públicas do Portugal 2030, pelo impacto enorme que terão nos territórios e nos respetivos mercados de emprego regional, estamos perante uma transformação profunda da economia e da sociedade portuguesas. O assunto é demasiadamente sério e não pode ser tratado com ligeireza, embora todos saibamos que num horizonte tão largo de tempo tudo pode acontecer. Sendo este o pretexto, vejamos, mais de perto, o contexto em que tudo isto acontece. Estamos, digamos, na fase discursiva do problema, enunciando e anunciando programas, planos e roteiros. Participei na mesa redonda da sessão pública realizada na Universidade do Algarve no passado dia 27 de fevereiro, é, pois, uma boa altura para algumas reflexões a propósito.

1. As grandes transições, convergência ou divergência?

Estão em curso quatro grandes transições. A transição climática, por virtude do aquecimento global, uma nova era climática que alguns cientistas designam de “Antropoceno”. A transição energética em direção a um novo mix de energias renováveis e limpas. A transição digital por via da desmaterialização de processos e procedimentos em praticamente todas as áreas. Finalmente, a transição demográfica por via do crescimento natural e das migrações na grande aldeia global em que habitamos. O que não sabemos, ao certo, é se estas grandes transições convergem ou divergem e, em consequência, qual a dose de mitigação, adaptação e transformação que deve ser recomendada e aplicada.

2. A descarbonização da economia

A descarbonização da economia será acelerada pela transição digital (otimização de recursos) e acontecerá em todos os setores de atividade: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na descarbonização da administração pública e das cidades. O RNC 2050 e mais perto de nós o PNEC 2030 cobrem uma extensa gama de setores que atravessam transversalmente toda a economia portuguesa. Da prevenção à mitigação e da adaptação à transformação, eis todo um programa de ação para a próxima década e um complexo de políticas públicas de difícil administração.

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3. A nova economia da era digital

A descarbonização será maioritariamente acessível através da nova economia da era digital: na cidade inteligente, na rede de energia inteligente, na economia circular, na economia da biodiversidade e dos serviços ambientais, na economia verde e alimentação, na economia azul, na economia da habitação e bioconstrução, na economia da saúde e dos cuidados primários e na economia da proteção civil e da biossegurança, entre os mais relevantes. As redes inteligentes tomarão conta destes setores e a desmaterialização de processos e procedimentos permitirá poupar muita energia.

4. A descarbonização inteligente e a reconfiguração das políticas públicas

Para descarbonizar a economia é, também,  necessário “descarbonizar o processo político” e chegar a uma nova composição de políticas públicas, ou seja, é necessário obter um consenso político acerca do mix de dois grandes processos inteligentes que podem colidir entre si: de um lado, o mix entre a inteligência racional e a inteligência artificial por via da governação algorítmica, a robotização e a aprendizagem automática, por outro lado, o mix entre a inteligência territorial e a inteligência emocional, que considero essencial para promover as transições e adaptações suaves na geografia e no corpo social das nossas regiões e territórios concretos. O processo político terá de fazer convergir as quatro inteligências.

5. A smartificação do território, entre a fratura e o negócio digitais

A descarbonização da economia implica uma nova geração de investimentos públicos no território, sobretudo, a sua cobertura digital adequada para processar um grande volume de dados. Entre a infraestruturação digital e o desenvolvimento regional interpõe-se o negócio digital, uma parte dele declaradamente oportunistico e que nem sempre contribuirá da melhor maneira para a estratégia de desenvolvimento. A arritmia da inovação e do investimento em tantos setores que deviam estar conectados para produzir bons resultados ocasionará, inevitavelmente, um efeito de dissipação do próprio processo de descarbonização que é preciso levar em linha de conta desde o primeiro momento.

6. Uma nova estrutura de custos e benefícios de contexto

A descarbonização da economia cria uma nova estrutura de custos e benefícios de contexto que é necessário antecipar para o momento zero do RNC e do PNEC. Se não fizermos de forma proativa a pedagogia desta nova estrutura de custos e benefícios podemos estar a criar uma nova geração de “free raiders” e um elevado risco moral em todo o processo de descarbonização. Se a nova estrutura de custos e benefícios de contexto não for acompanhada de um sistema de incentivos apropriado e de uma nova “despesa fiscal” para o efeito, ninguém poderá garantir o sucesso deste grande empreendimento.

7. Alterações na estrutura empresarial, cadeias de valor e mercados de emprego

A descarbonização da economia, se for conduzida em profundidade, induz alterações profundas na estrutura empresarial, na repartição do valor no interior das fileiras económicas e nos mercados de emprego regionais. É preciso cuidar dos efeitos de aglomeração territorial, de novas assimetrias territoriais, da concentração empresarial e dos efeitos de exclusão social em consequência da neutralidade carbónica e dos planos de energia e clima. Se em cada região NUTS II não cuidarmos do equilíbrio destes vários efeitos externos e não tivermos um nível de ataque para os programar e reparar a tempo e horas, teremos, seguramente, muitos problemas graves pela frente.

8. A descarbonização da economia e a regulação da concorrência

A descarbonização da economia, ao alterar os custos e benefícios de contexto e a posição relativa dos agentes económicos nas cadeias de valor respetivas, muda, também, a sua posição relativa no que diz respeito às regras de concorrência. Estas alterações devem, por isso, ser balizadas pela política regulatória da União Europeia sob pena de se transformarem em fatores ativos de violação das regras de concorrência e prejudicarem o próprio processo de descarbonização da economia em curso. Os pagamentos por serviços ecossistémicos, peça central da política de descarbonização, são considerados efeitos externos positivos e como tal devem ser aceites pela nova política regulatória.

9. Da governação algorítmica à administração multiníveis do território

A descarbonização da economia, na sua aceção mais ampla, é um complexo de políticas e medidas de política que se desenrola a vários níveis. No plano macro ela é, sobretudo, programação e controlo e, portanto, segue uma estratégia de “vigiar e punir” que a governação algorítmica já conhece muito bem. Isto acontece ao nível NUTS I. No plano meso-regional faz-se a administração das medidas de política de modo a conseguir conciliar planeamento operacional com flexibilidade na sua aplicação. Isto faz-se ao nível NUTS II e, agora, também, ao nível NUTS III. Finalmente, no plano dos micro comportamentos promove-se o exemplo do benchmarking mais adequado a uma administração de proximidade. Neste contexto, a emergência de plataformas colaborativas descentralizadas pode ser uma novidade, por exemplo, as “comunidades de produção energética” ou as “comunidades locais de produção de alimentos limpos”.

10. A descarbonização das relações humanas e a ética do cuidado

A descarbonização da economia pressupõe que somos capazes de “descarbonizar as relações humanas”. As grandes mudanças enunciadas anteriormente não chegam a lado nenhum se não existir um consenso político acerca de uma ética mínima, no plano dos valores, de uma economia dos comportamentos e da vida de relação: saber cuidar, com empatia e compaixão, saber receber, com hospitalidade e boa convivência, saber respeitar e partilhar, saber cooperar, ser responsável e solidário. Uma ética prática do cuidado, sob a forma de responsabilidade de si, dos outros e da terra-mãe, é uma condição essencial para um novo modelo de sociedade.

Notas Finais

Os desafios lançados pelo RNC 2050 e o PNEC 2030, mas, também, pelo Programa Nacional de Investimentos (PNI) e o Programa Portugal 2030, só terão valido a pena se tivermos promovido a passagem da lei do mais forte para a lei do mais justo. Diz a primeira, “privatize-se o benefício e socialize-se o prejuízo”. Diz a segunda, “socializem-se os serviços ambientais prestados por via de remuneração, privatizem-se os prejuízos causados por via de sanção”. Esta é a grande transição paradigmática contida na descarbonização da economia e significa que é preciso superar a “visão industrialista” das políticas públicas, homogeneizante e normalizadora, geralmente dirigida a um destinatário abstrato e universal.

Uma primeira nota, nesta transição, diz-nos que há um risco elevado de dissipação e entropia que tem a ver com a descontinuação ou redução dos investimentos programados e com a desconexão ou lags das medidas de política previstas. Quem fica a perder são, geralmente, os micro e pequenos projetos que se inscrevem numa linha de coerência de médio e longo prazo e que neste enquadramento não encontram os benefícios de contexto e as economias de rede mais apropriados.

Uma segunda nota diz-nos que a descarbonização da economia associada a um plano de energia e clima pode constituir uma grande oportunidade para o aproveitamento dos recursos endógenos que passam a ser considerados sob uma outra perspetiva. Onde antes estavam recursos expectantes, imóveis, inertes e inúteis, por falta de tecnologia e iniciativa apropriadas, podem estar agora ativos preciosos que as tecnologias e a economia digital podem promover adequadamente.

Uma terceira nota diz respeito ao modo como a administração pública local e regional aproveita esta oportunidade para se articular com as populações locais que se expressam em comunidades online por via de plataformas locais de base tecnológica. Estamos a falar de modernização administrativa, mas, sobretudo, da articulação entre inovação tecnológica e inovação social no âmbito do que hoje se designa como “a inteligência coletiva e a inovação colaborativa”.

Uma quarta nota diz respeito à forma como iremos ultrapassar a iliteracia digital e as lacunas de iniciativa empresarial nestas áreas da economia digital, por exemplo, em tudo o que diga respeito às plataformas locais de inteligência coletiva territorial.

Uma nota final, de síntese, acerca do que eu chamo “a arte da composição dos territórios-rede”. De facto, depois de tudo o que fica dito, estamos perante uma transformação tão complexa e profunda que todos os territórios estão obrigados a encontrar rapidamente o seu modus operandi e a cadência própria da sua transformação estrutural. Por isso, eles têm de ser “territórios-rede desejados”, dotados com inteligência coletiva própria, e em especial um mix de inteligências – racional, artificial e emocional – que lhes permita acompanhar o ritmo das transformações. Uma última palavra para a “escola nova” do novo paradigma: sim às ciências e à sua racionalidade analítica, sim à revolução digital e à racionalidade própria da inteligência artificial, sim às artes e à cultura, mas, também, à ética do cuidado e ao sentido da vida que são inerentes à inteligência emocional.

Universidade do Algarve