Quero ainda insistir numa referência do texto da semana passada e arrastar de novo para aqui o Jorge Palma. Há uns anos escrevi que, se alguém colocasse uma bomba no videoclip da canção “Encosta-te a mim”, morria ali a música portuguesa (não sei se se recordam da cena mas basicamente era todo o artista encartado do país a abraçar o bom Jorge). O meu intuito não era espevitar discursos de ódio, até porque estimo o Palma (e isto foi na ingénua primeira década do milénio, onde os polícias das nossas consciências ainda não estavam tão munidos), mas lamentar que fôssemos tão amigos uns dos outros. Sim, esta é uma das nossas mais particulares desgraças, como povo: só sabemos viver amigos uns dos outros.

Culturas mais admiráveis do que a nossa têm a amizade como decisão e não como decreto. Ando a ler poesia chinesa antiga e lá tenho descoberto as virtudes da amizade como um estilo de vida exigente mas recompensador. Aparentemente, na Ásia longínqua do Século IV, ser amigo de alguém era uma opção típica de pessoas sérias, em alguns casos quase eremitas. Ser realmente amigo de alguém provinha de uma sabedoria consistente, em nada casual. O poeta Tao Yuanming, por exemplo, escrevia assim: “a viver retirado é que eu sou feliz/ (…) aquilo em que muitos pensam como tesouros/a mim não me interessa nada/quando não temos as mesmas paixões/o melhor é nem nos aproximarmos/os verdadeiros amigos acabam por se cruzar”.

Se pudesse nascer de novo para viver esta vida aqui, ainda antes da nova que me esperará depois da ressurreição, decidiria ter menos amigos. Como assim? Uma das maiores bênçãos que me foi dada redunda muitas vezes em maldição: acumulo amigos esfomeadamente e, no final, acabo mau de quase todos. Difícil não é ser inimigo mas amigo. Há pouco tempo escrevi uma canção em que confessava: “lidar com quem me despreza/tantas vezes me custa./Mas responder a quem me ama/é o que realmente me assusta”. O modo miserável como retribuo à graça dos que cuidam de mim é certamente um dos meus piores defeitos.

Daí saber que um dos elogios mais comuns, quando dizemos de alguém que “era amigo do seu amigo”, é uma patranha dupla. Em primeiro lugar, “ser amigo do seu amigo” é um embuste porque, como Jesus explicou no Sermão do Monte, “se amardes os que vos amam, que recompensa tendes?” O que de especial há em querer ser bom para quem é bom para nós? Por outro lado, “ser amigo do seu amigo” é um embuste porque, na verdade, nunca somos amigos competentes de ninguém. A amizade é uma dedicação a alguém, dedicação essa em grande parte independente da pessoa nos corresponder. Nesta medida, ser verdadeiramente amigo de alguém é, por natureza, o investimento numa causa perdida. Os meus amigos são aqueles que se mantêm como tal precisamente por eu não saber “ser amigo do meu amigo”.

E isto também se vê na prática em épocas festivas. Uma adicional pobreza portuguesa é, por sermos tão poucos, guardarmos a presunção de juntar tudo o que é bom em qualquer comemoração. Falta-nos espaço para, no afastamento natural uns dos outros, cultivarmos uma proximidade que não seja apenas o resultado natural da nossa pequenez. Não somos por vocação amigáveis, enquanto povo; faltam-nos é as dimensões para nos sentirmos livres para viver distantes sem culpas. Sei isto na pele porque, por exemplo, quando estou numa festa, mais rapidamente o pensamento me leva para o ressentimento com quem falta do que para o prazer de quem está. Qualquer oportunidade de festejar com os outros sublinha em mim a mesquinhez.

Desejo que as grandes festas do meu futuro me acendam nas presenças e não nas ausências. E é tão difícil para mim deixar de contar as pessoas nos auditórios dos grandes acontecimentos da nossa vida. Tenho aprendido que a minha inclinação para acumular pode ser o disfarce perfeito para o vazio dentro de mim. Neste sentido, o menos pode ser mais. Quem é crescido sabe conviver com o facto de a minha festa não precisar de ser a tua e vice-versa. Grandes amizades podem começar neste ponto, na descoberta de que uma pessoa pode caber no tão pouco que tenho em comum com ela.

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