Como escreveu Amos Oz, o fanático é um tipo que só sabe contar até um. Com tendência para viver num mundo a preto e branco, como num western simplista dos bons contra os maus, o fanático vive num misto de raiva diluída em autocomiseração lamecha.

Com esta condição mental, o fanático torna-se uma espécie de polícia social, que o leva a tudo escrutinar e calcular, desde a proporção de mulheres, pessoas de cor, pessoas trans, gays ou lésbicas, deficientes físicos ou gordos, em cada livro, filme, instituição e se algum estiver sub-representado, segundo a sua opinião, vai reclamar. Daqui irá à exigência que, por exemplo, os actores representem apenas personagens dos seus próprios grupos de identidade – portanto uma mulher heterossexual não pode ser autorizada a interpretar uma mulher lésbica num filme, nem uma pessoa apta fisicamente pode assumir o papel de uma pessoa com deficiência. Um branco, também não deve declamar um poema escrito por um negro.

Parece esquecido por muita gente, mas o expoente do identitarismo já ocorreu há menos de cem anos, quando em 1933, o governo alemão publicou um novo decreto sobre seguros de saúde que levou ao encerramento das clínicas de aconselhamento financiadas pelo Estado. Os médicos e outro pessoal foram expulsos. Os nazis argumentaram que o sistema de medicina social desenvolvido pelo Estado de Weimar estava orientado para impedir a reprodução dos fortes e apoiar as famílias dos fracos. A higiene social deveria ser substituída pela higiene racial. Neste caso estamos perante racismo, não deixando, em todo o caso, o racismo de ser uma forma de identitarismo, sem dúvida das mais violentas. (Richard J. Evans)

O identitarismo não consegue superar a sua condição de política de identidade simplista, que considera existir uma espécie de culpa colectiva aos grupos dominantes- os brancos são racistas, os homens são sexistas e os heterossexuais são homofóbicos. Com o surgimento da pandemia entendem que surgiu um novo grupo dominante que pretende reprimir os direitos civis: os vacinados em relação aos designados negacionistas.

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A interpretação literal e abrangente do que se deva entender – para quem se dê ao trabalho de pensar, coisa que cansa muito- por direitos inquestionáveis leva a situações absurdas como “ quando o direito a uma vida familiar, declarado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos permite a um criminoso que também é um emigrante ilegal, escapar á deportação; quando o direito ao estilo de vida tradicional da comunidade étnica de uma pessoa, declarado pelo Tribunal dos Direitos Humanos, é usado para instalar um acampamento de caravanas desrespeitando a lei do planeamento urbano, assim destruindo o valor da propriedade à sua volta; quando o Tribunal da Columbia Britânica descobre o  direito a não ser ofendido violado pela resposta de um comediante de stand up à marmelada ostensiva de um casal lésbico na fila da frente do seu espectáculo; quando banqueiros reivindicam ( Financial Times 07/10/2013) os seus bónus escandalosos como um direito humano; quando os tribunais são sobrecarregados com estes casos e similares que chegam a um ritmo de sete por dia na Grã-Bretanha, estamos autorizados a perguntar se o conceito de direito humano está de facto solidamente instituído e se existe algum argumento consistente que nos permita distinguir o verdadeiro do falso entre os muitos concorrentes” (Roger Scruton)

Quanto ao exercício destes direitos, que já estamos a verificar podem produzir decisões judicias bizarras, encontra-se a liberdade de expressão e, claro, os seus limites. É bom que fique assente, porque parece que há quem desconheça, ou conhecendo ignore, que em todos os ordenamentos jurídicos à escala mundial, incluindo as democracias, a liberdade de expressão tem limites.

Em todos os Códigos Penais estão tutelados os crimes contra a honra, nomeadamente o crime de difamação, injúria, ofensa à memória de pessoa falecida e ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva. Mas na prática está quase instituída uma impunidade, conforme esses delitos são cometidos numa rede social ou em caixas de comentários ou, ao invés, a imputabilidade como crime público ou dependente de queixa, quando é cometido pelos jornalistas ou comentadores nos seus escritos ou por outras pessoas em lugares públicos de modo verbal. E até esta última situação parece estar a ser preterida da respectiva moldura penal. Ou seja, começa a tornar-se penalmente irrelevante que alguém, porque lhe apetece, acusar de pedofilia ou assassínio, um qualquer cidadão que encontre na rua, sem que daí lhe resulte qualquer incómodo, salvo se o cidadão ofendido lhe responder com uma traulitada na cabeça, caso em que será este cidadão a ser julgado por ofensas à integridade física do difamador e já não espantaria se for condenado por “reação excessiva” ao exercício da liberdade de expressão.

Mas no recato das teclas de um computador, ninguém previsivelmente levará uma sova pelos dislates que propaga. Este instrumento chamado rede social é que constitui de facto a novidade que tudo vem alterar, tornando a prevenção de crimes contra honra irrelevante e a própria repressão desses crimes, quase impossível.

Como escreveu David Runciman, “Mark Zuckerberg é uma ameaça maior para a democracia americana que Donald Trump (…) A democracia americana sobreviverá a Trump, porque as virtudes negativas da democracia se encarregarão de o por a andar. Mas nenhuma virtude negativa servirá para pôr Zuckerberg a andar, porque isso exigiria algo mais positivo. As instituições de que precisamos para confrontar o crescente vazio político que sentimos são aquelas que um super-solucionismo e um super-expressionismo estão a esvaziar.”

Palavras premonitórias escritas em 2018. É assim mesmo que está a acontecer.