Uma das coisas que não estava a bater certo na minha vida era a mesa. Graças a Deus nunca me faltou comida, mas até determinada altura comia para viver. À medida que fui ficando mais cristão fui compreendendo que o cristão vive para comer. Claro que nada disto serve para justificar o pecado da gula que em 2022 continua a ser mau (a gula é um pecado também porque, precisamente!, desrespeita o verdadeiro valor da comida num processo de ela ser usada como figurante da cena terrível que é não nos satisfazermos com nada). Mas hoje sei que acreditar em Cristo passa por viver para comer. Não comemos para viver; vivemos para comer.

Para os cristãos a eternidade é descrita como uma mesa—as bodas do cordeiro. A ressurreição é uma refeição e, como o C. S. Lewis lembrava, os cristãos são os verdadeiros materialistas. Nós não desejamos o além para nos livrarmos das coisas daqui; nós desejamos o além para, mais do que nunca, termos as coisas daqui. É precisamente pelos cristãos odiarem uma existência de pessoas meio transparentes que toquem harpas sentadas em nuvens que sabemos que o que virá depois da morte será tão físico que o que é físico agora parece fantasma. “Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face”.

A mesa não estava certa na minha vida porque em grande parte comia para viver. Nunca fui de excepcionais apetites e qualquer coisinha no prato me satisfazia. Tenho anos de teologia e metafísica mas tem sido a comida a matéria de estudo mais exigente. Hoje sei que há uma diferença abismal entre uma refeição e uma ração. Passei décadas a tomar rações mas hoje invisto na refeição. Na escola da refeição ainda sou um aprendiz e sei que o curso vai levar-me a vida toda. Mas estes estudos não abandono eu.

Na casa da Família Cavaco fazemos por ter refeições (e toleramos também momentos de ração em que cada um “trata do seu”). O que é, para nós, uma refeição? Uma refeição não é o consumo colectivo de uma ração—isso qualquer porco consegue. Uma refeição é o uso do discernimento quando se mastiga. Uma refeição implica a valorização voluntária do esforço que existiu para que o nosso prato se enchesse (passamos a querer saber o que comemos e como o que comemos aconteceu). Uma refeição implica também a valorização daquele que ao nosso lado se senta, quando mastigamos. Uma refeição tem um aspecto religioso óbvio ao passo que uma ração chega e sobra para qualquer ateu.

Numa refeição as pessoas à mesa olham para o prato mas olham umas para as outras. Usam a boca para comer e usam a boca para conversar. Ao passo que uma ração é como tomar medicação de um modo mais prolongado, numa refeição a cura é outra: o que se faz não é apenas um meio para um objectivo, mas o que se faz, sendo também um meio, é o próprio objectivo. Os problemas antigos que tinha com a mesa estavam ligados ao facto de separar a substância do estilo, como qualquer palerma gnóstico faz. Julgava que comer era um estilo sem importância para a substância que era sobreviver. Agora sei que comer é a própria substância de estar vivo e não quero mais ser um palerma gnóstico.

A maior escritora viva da língua portuguesa, a Adélia Prado, tem um poema chamado “Tempo” em que diz assim: “Quarenta anos: não quero faca nem queijo./Quero a fome.” A Adélia sabe que a fome não é um problema a resolver (apesar de também poder ser), mas o meio que nos conduz ao melhor tipo de existência. Sem uma fome séria, vivemos de ração em ração, com tão pouca atenção para o que comemos como tão pouca atenção para com quem comemos. Uma das piores características do meu passado era precisamente viver sem fome, rapidamente nutrido por qualquer treta (relembro que esta fome não tem nada a ver com a gula que é o tal cultivo da insatisfação). A fome elogiada pela Adélia é a conquista do maior critério, que sendo físico não pode deixar de ser espiritual.

Um cristão vive para comer também porque Cristo é, para ele, comida. É pão e é vinho, é espírito e corpo, é barriga cheia e músculo pronto. As migalhas que Deus nos dá já nos vão servindo ao mesmo tempo que, por outro lado, a fome nos cresce. Não creio em cristãos que não sejam salivantes, sôfregos, insaciáveis. Claro que agradecemos pela comida que não nos falta. Mas por cada pedaço dela que aqui provamos, abre-se-nos o apetite para mais, muito mais. Aprender a comer é a actividade mais importante do mundo.

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