Estamos a iniciar o período pré-eleitoral com debates entre os vários partidos que se apresentam a estas eleições. Cada um com as suas propostas, lá vão discorrendo sem grande penetração analítica e entre o olhar míope dos críticos oficiais e a superficialidade ou apatia da generalidade dos eleitores.

Nos partidos com propostas políticas à direita, há uma falha fundamental que importa corrigir rapidamente. Trata-se da total ausência de discussão em torno do tipo de estado que queremos.

O Chega apresenta um programa de índole claramente estatista, em que o raciocínio é o clássico: ‘o problema do estado não é o estado, mas sim quem lidera o estado’. Para o Chega, o problema não é o estado, mas o Chega não liderar o estado.

Ainda à direita, no espaço ocupado pelo CDS-PP e pela Iniciativa Liberal, o debate parece centrar-se um pouco mais em torno daquilo que nos parece relevante: ambos os partidos defendem o mercado e parecem reservar ao estado um papel mais limitado. Ao ponto de o eleitorado ter dificuldade em distinguir, a este nível, as respectivas mensagens: ambos defendem a privatização da TAP, ambos defendem redução de impostos, ambos defendem menos paternalismo e ambos defendem menos interferência do estado em esferas que são do foro do privado. Há, contudo, diferenças. Por exemplo, o CDS defende estes valores em torno do papel do estado desde a sua fundação. Uma leitura dos documentos fundadores do CDS revela que, na verdade, a Iniciativa Liberal não trouxe nada de novo ao nível dos princípios relativos ao estado e à sua relação com o indivíduo. Foi Lucas Pires quem disse que “ao princípio não era o estado, era o Homem”; não foi certamente Cotrim de Figueiredo quem o disse.

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Há, no entanto, algo que, em nossa opinião, distingue profundamente o CDS da IL: o realismo. Queremos com isto significar o seguinte. O CDS reconhece o papel limitado do estado, mas isso não significa que o CDS imagine como sendo possível fazer um ‘reset’ ao estado que temos. Acresce a isto que, dada a veia conservadora do CDS, este reconhece que nem tudo o que foi alcançado pelo estado português é mau. Em linha com a tradição conservadora, o CDS reconhece o que de bom herdámos e não almeja a reinvenção da sociedade, do estado e muito menos do indivíduo. É este realismo o que, parece-nos, distingue o CDS da IL, a qual, com a sua marcada tendência para o progressismo social, parece acreditar que é possível reinventar o sistema nacional de saúde, o sistema de educação, fechar a TAP por decreto e, de certa forma, inventar um Homem novo. Esta tentação pela reinvenção daquilo que somos é visível no sentido de voto da IL em sede parlamentar quanto às questões ditas “fraturantes”, onde este partido se tem colocado claramente do lado do progressismo social e, por essa via, mais próximo do centro-esquerda e da esquerda radical do que da direita. Não será por isso de estranhar que muitos associem o CDS ao conservadorismo e a IL ao liberalismo, sendo certo que o progressismo social é totalmente contrário ao ideal do liberalismo, pois, como dizia Hayek, por muito que um liberal se esforce, nunca será capaz de inventar as regras de uma ordem espontânea.

Chegados aqui, e pese embora o que aparentemente une e distingue o CDS e a IL, há algo que os une de forma preocupante: o facto de ambos não dedicarem uma palavra ao que, em nosso entender, é o grande desafio da direita liberal – o aumento exponencial do poder conferido às burocracias estatais e em particular a burocratas não eleitos. Com efeito, a burocracia é um modo de processar procedimentos inúteis e conferir poder a uns tantos, que pouco sabem fazer a não ser carimbar papéis, sendo o triunfo deslumbrado da incompetência dos que só querem atrapalhar a vida dos outros ou bloquear a acção dos que querem ou sabem fazer alguma coisa.

A crise desencadeada pela COVID veio acentuar este fenómeno, o qual, não sendo novo, ganhou novos contornos: os burocratas entraram naquilo que alguns denominam espaço da ‘bio-segurança’, no qual regras prudenciais com elevado impacto sobre a vida dos cidadãos são decididas à margem dos processos democráticos e do enquadramento constitucional de um país. Este fenómeno não é exclusivo de Portugal; é um fenómeno que preocupa muitos no Ocidente, e que alguns têm associado a um perigoso fascínio entre os ocidentais com aquilo que é muitas vezes descrito como o sucesso e a eficiência do estado Chinês. A crise gerada pela forma como a COVID foi gerida demonstrou que há, em Portugal e no Ocidente em geral, uma facilidade perturbadora no que toca à aceitação destas medidas desenhadas por burocratas, apresentados como sendo pessoas dotadas de uma neutralidade pseudo-científica – na verdade inexistente –, medidas essas em clara contradição com a vasta maioria dos princípios políticos e das normas culturais que nos guiaram durante séculos e nos trouxeram até aqui.

À COVID podemos agora somar a alegada emergência climática. A recente lei do clima (Lei n.º 98/2021, de 31 de Dezembro), aprovada pela Assembleia da República, é o exemplo acabado da tomada de poder por burocratas. São previstos direitos e deveres climáticos, o exercício da cidadania climática, reconhecida a situação de emergência climática e, embora se acrescente que isso não constitui uma declaração de estado de emergência ao abrigo do artigo 19.º da Constituição, admite-se que este possa vir a ser declarado por motivos relacionados com o clima (como se fosse necessário fazer tal ressalva). Aprovada em sede parlamentar, a lei redunda, na verdade, na instituição de elementos de burocracia estatal, os quais rapidamente escaparão aos próprios processos de controlo democrático que estiveram na origem da dita lei. Por exemplo, é criado um “Conselho para a Ação Climática”, logo designado, no próprio diploma, por CAC (o recurso obstinado a acrónimos para designar órgãos é, em si, o emblema máximo da burocracia levada ao extremo), que será um “órgão especializado, composto por personalidades de reconhecido mérito, com conhecimento e experiência nos diferentes domínios afetados pelas alterações climáticas, incluindo gestão de risco e políticas públicas, e atua com estrita isenção e objetividade, em obediência a critérios técnicos devidamente explicitados, não podendo ser sujeito a direção, superintendência ou tutela governamental”. Ou seja, além do Ministério do Ambiente, da Agência Portuguesa do Ambiente (acrónimo APA), teremos ainda um CAC com competências consultivas em matéria de acção climática e que, entre outras coisas, servirá certamente para ter uns tantos num gabinete a carimbar papéis e a ‘certificar certificados’.

À parte as minudências associadas a casos e leis em concreto, parece-nos que não há no espaço público e político nacional um debate sério e profundo em torno do que pretendemos para as burocracias estatais e, especialmente, para os seus burocratas. Este debate é fundamental também ao nível da Europa, onde burocratas não eleitos dominam a política e as instituições europeias. A urgência do debate prende-se não só com o crescente poder, à margem de processos democráticos, das burocracias estatais e europeias, mas com o facto de a alegada neutralidade das ditas burocracias (neutralidade de facto inexistente) ter como consequência o “fim da política”. A política, ao contrário do que muitos advogam, não é, nem dever ser, acerca da neutralidade, muito menos acerca da neutralidade dita científica (a qual também é inexistente, principalmente quando se trata de pseudo-ciências cujo objeto é tudo aquilo que é do domínio do social). A política não deve submeter-se aos pareceres dito técnicos dos burocratas. Contudo, a imagem de neutralidade técnica com que os burocratas estatais se vestem tem tido como consequência a eliminação do debate em torno de temas que são fundamentalmente políticos. O silenciar da dimensão política da crise gerada pela forma como a COVID foi abordada constitui um sinal perigoso do que aí vem. A recente transformação da alegada crise climática num assunto para ser tratado pelos burocratas (ver decreto-lei citado acima) confirma o nosso receio de que também o clima, que é uma questão fundamentalmente política porque tem consequências políticas ao nível de como nos organizamos em sociedade, tenha sido transformado, por decreto, num assunto meramente técnico e que por isso escapa ao debate público. Ora, o fim do que é do político resulta sempre no mesmo: totalitarismo…