Eu sei que é normal falar-se da banalidade do mal.

O Papa Francisco referiu-se, nesta Páscoa, à banalidade do mal. Hannah Arendt escreveu sobre a banalidade do mal. Mas não há nada de banal no mal.

Não há nada de banal na multidão que empurra um jovem de uma bancada abaixo e o mata, sem razão, porque não há nenhuma razão que justifique que uma multidão empurre um jovem de uma bancada abaixo. Por impulso. Por vingança. Por fanatismo.

E afinal, entre aquelas dezenas de jovens e menos jovens que o empurraram da bancada abaixo, um por um, cada um deles, quantos serão verdadeiramente maus? Quantos são banais? Todos? Nenhum.

São todos maus ou nenhum é mau?

Não há nada de banal nas claques que cantam horrores, que desejam a morte dos adversários, que lembram a morte dos adversários. E decerto muitos deles serão nossos amigos, nossos conhecidos, amigos de amigos nossos, filhos de amigos de amigos nossos. A probabilidade disso acontecer é muito elevada. São maus? Ou apenas banais? Banalmente maus?

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É normal habituarmo-nos ao mal. Um atentado hoje, dois amanhã, cinco mortos aqui, dezenas num local exótico cheio de gente desconhecida, habituada a morrer assim. Habituada? E a pensar desse modo deixamos de julgar, de reflectir eticamente, porque não vale a pena, o trato desumano de quem não conhecemos é apenas mais uma história de entreter que nos enche os ecrãs, de televisão ou computador, iPad ou telemóvel.

É exactamente isso que quero dizer: entretém-nos, esse mal tão banal a que nos habituamos.

Vamo-nos tornando, aos poucos, acríticos veículos de acções que indirectamente sancionamos, aderindo em grupo – (alguns diriam em manada) – a ideias que encaram a humanidade como um mal banal, que é preciso combater com mão forte, isto é, com um mal igual, ou superior. Aderimos a propostas totalitárias, demagógicas, mentirosas, que nos anunciam o advento de um tempo novo, feito de homens poderosos, de soluções autoritárias, de medo.

Nesse tempo novo, não há lugar para a verdadeira humanidade, a que nos liga aos outros e nos faz humanos. Morre tanta gente nos nossos ecrãs, hoje em dia, que já nos habituámos – e o sofrimento alheio deixou de nos impressionar. É tudo de uma confrangedora banalidade, até o mal.

Por muito mau que seja.

Mas os povos perdidos do corno de África, as crianças que nunca serão crescidas da Líbia, os mortos no cemitério líquido do mar mediterrâneo, as vítimas da corrupção e do crime organizado no Brasil ou na Venezuela, a nação de alienados de Kim-Jong-il, o armagedão sírio, não são banais.

O que perdemos? Porquê esta indiferença colectiva, associada a um frenesim “voyeur” que nos faz correr a abrir o link que anuncia uma “morte em directo”, para logo pronunciarmos – de preferência em grupo -, “que horror” e continuarmos a navegar a rede em busca da próxima sensação, das imagens ainda mais horríveis, do momento “gore” do dia?

Tornou-se tudo subjectivo, deixámos de valorizar a liberdade de escolher pela responsabilidade que acarreta, preferindo deixar a um Deus qualquer, de preferência digital, esse ónus.

Steve Stephens matou a sangue frio um velho de 74 anos, Roberto Godwin Sr., porque a namorada o deixou. E transmitiu o homicídio no Facebook. A notícia está aqui ao lado, no Observador. Passou-se nos Estados Unidos? Não, passa-se no Mundo inteiro, e teve já milhões de visualizações.

“Que horror”! “Passas o azeite, se faz favor?”.

Recomenda-se que os meios de comunicação social não divulguem as imagens da morte de Godwin (ou os atentados de Estocolmo, Londres e Paris, ou os crimes horríveis do Daesh), que não as partilhemos, não as procuremos ver, sequer, para evitar o efeito de contágio. Mas são tão irresistíveis…

E sabemos, nós sabemos. Em jantares de amigos, entre o indignado e o resignado, dizemo-nos incrédulos com a incapacidade da sociedade se chocar, já nada nos impressiona verdadeiramente, andamos absortos, hipnotizados com os milhões de bits que nos agridem diariamente. Nada mais banal, “mas agora passa o sal…”.

Hoje choca-me o menino da Síria que morreu na praia.

Amanhã, o pior é o atentado numa cidade europeia (mais longe nem por isso).

Depois, chegará o tempo de verter uma lágrima pelos meninos que perdem a pele na Síria comida por um gás qualquer, “dizem que é sarin” (e batem-se palmas à mãe de todas as bombas, enquanto não chega o pai de todas as bombas e outros familiares dessas mesmas bombas).

No dia seguinte será o tempo de me indignar com as claques dos três grandes (nunca um adjectivo foi tão vilipendiado); e essa indignação corre o risco de durar, porque o futebol, que não sai dos meios de comunicação, em certo sentido escapa ao sentido desta crónica – mas isso é outra história.

Porque cresce o mal nas nossas sociedades mediatizadas e desenvolvidas? Terá sido sempre assim? Será sina da Humanidade retrogradar com denodo e frequência de tempos de liberdade, responsabilidade e democracia, da polis ateniense para as ditaduras europeias, da Alemanha da segurança social para a Alemanha de Eichmann (para me ficar por Arendt), da paz perpétua kantiana para a ameaça pós-moderna – e pós-verdade – dos populismos contemporâneos?

É normal falar-se da banalidade do mal.

Mas não é a banalidade do Mal que nos deve preocupar, é antes a sua banalização.

O que não é de todo a mesma coisa.