14 de Novembro de 2021, após o Portugal-Sérvia: Cristiano Ronaldo, vencido pelo assombro e pela desolação, acocora-se no relvado em evidente solidariedade para com Alok Sharma, o presidente da COP26, que, menos de 24h antes, tinha assinalado com lágrimas o desfecho inglório dessa cimeira pelo clima em que nem pela nossa saúde os governos mundiais se dignaram a estar à altura do momento. Tanta pompa e tanta circunstância para se saírem com menos do que Paulo Portas e o seu guião para a Reforma da Administração Pública.

Estamos habituados à hipersensibilidade dos delicados homens do futebol, ora choramingando porque o cartão é amarelo, ora porque o relvado é verde, mas ninguém nos preparou para os ver de beicinho caído por coisa que importe e de tão singular foi essa imagem que fez estremecer todo um país. O sobressalto começou por se manifestar com as habituais cassetes desenrolando novos paradigmas, descarbonizações, electrificações, economias verdes, etc, mas depressa se subiu de tom: invista-se em máquinas de captação de carbono, a tecnologia sempre traz tantos problemas como os que leva, plante-se então daquelas coisas grandes e verdes ali ao longe, transportes públicos! transportes públicos! Aqui desabam sem cerimónia troares de sarcasmo e de escárnio: que transportes públicos esperais num país desarticulado e disperso como se com nojo de si próprio e que sonha com um mamarracho em cada alto e alcatifa em cada morro? Já não se sabendo se reinava algazarra ou zaragata, entra em cena uma trupe de notáveis impondo-se pelo pranto e pela coreografia, batendo com as alvas mãos nos peitos e entoando ladainhas empinadas por ruidosos “ais!”. Ai que nos desembarretamos pela dívida pública, pelas bolsas e mercados, pelo “inverno demográfico”, pelas caudas da Europa e por mil coisas mais, mas ai, que nada fizemos pela habitabilidade do mundo que deixamos aos nossos próprios filhos. E assim, entre assombros e achaques destes lá se vaporizaram os ânimos esquentados.

Reacções a Quente

De lá para cá, o primeiro-ministro declarou que teria de ser muito pateta para continuar a insistir no Novo Aeroporto de Lisboa quando o actual aguenta perfeitamente qualquer êxodo civilizado.Fizeram-se vigílias no faroeste alentejano pelo futuro do tomate cherry e os autarcas enfeitaram o Natal com biliões de luzinhas verdes para despertar consciências.

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Mas foi na homilia televisiva de Marques Mendes que, para grande sossego das almas, ficámos a saber que o herói da TaskForce para a Vacinação da Covid-19, Henrique Gouveia e Melo, já tirara o camuflado do armário para assumir o comando da recém-criada StarFleet para o Arrefecimento Global.

Ferver em pouca água

Para compreender esta azáfama é necessário puxar a fita atrás até 9 de Agosto de 2021, dia em que o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (conhecido como IPCC) apresentou o relatório da sua Sexta Avaliação, e cujo mero Sumário Executivo (SPM) é suficiente para fazer ferver o sangue a qualquer alma, à excepção dos governantes mundiais envolvidos na COP26. Esses não têm sangue nem alma.

O referido relatório resultou da revisão de milhares de estudos feitos por todo o mundo, com metodologias e modelos matemáticos diversos, tendo o IPCC identificado convergências e divergências, delimitado incógnitas, calculado probabilidades e avaliado graus de certeza. É em si uma obra admirável, um desbravamento do futuro pela força da lógica e da razão.

Apesar de o IPCC estar bem ciente de que ser sábio é ter dúvidas, o relatório oferece-nos algumas, poucas, certezas: cada uma das últimas quatro décadas foi sucessivamente mais quente do que a anterior; o mundo já aqueceu cerca de 1,09ºC (em relação a 1850) com efeitos que já se vêem e se sentem; continua a aquecer e cada vez mais rápido; o nível do mar vai continuar a subir nos próximos séculos; e, sim, a culpa deste aquecimento global abrupto é nossa. Nunca nos últimos 2000 anos o clima tinha aquecido a este ritmo e estamos de parabéns por isso.

O simples folhear do relatório acentua o ridículo na figura dos negacionistas que bradam e esbracejam porque o clima sempre mudou e porque o mundo já foi mais quente devido à actividade solar, à inclinação do eixo terrestre, e tal. E até é verdade, mas não foram eles a descobri-lo! Quem o descobriu é quem agora vem avisar que andamos a brincar com o fogo.

Além dos factores que esses místicos têm na ponta da língua, os cientistas do IPCC tiveram em conta as emissões de aerossóis (que fazem arrefecer em vez de aquecer), a viabilidade das tecnologias de captação de carbono, a utilização de terra, a actividade tectónica, etc. E até estão a contar com uma eventual grande erupção vulcânica e consequente expelição de enormes quantidades de aerossóis para a atmosfera!

Cá se fazem cá se apagam

O IPCC traça cinco cenários dependentes da nossa acção ou inacção. Dois são optimistas, um é sofrível e os restantes são cataclísmicos. Podemos descartar já os primeiros porque iniciam-se num 2015 alternativo (ano do Acordo de Paris que nunca se cumpriu) e porque assume que somos menos estúpidos do que efectivamente somos (ainda agora vimos como os nossos governantes, dos deputados de encher-chouriço ao Presidente hiperactivo, acharam por bem antecipar eleições a meio de uma pandemia). Por outro lado, acredito que também podemos descartar os cenários pessimistas porque, simplesmente, não somos loucos para tanto.

Resta então o cenário intermédio, que o IPCC designa criativamente por “SSP2-4.5” e que nos promete um aumento de temperatura média à volta dos 2,7ºC até ao fim do século e uns 2,0ºC lá para 2050.

E que nos traz então esse cenário relativamente benigno? Uma frequência muito maior de vagas de calor, secas e desertificação, entremeados de fenómenos de precipitação desenfreada e insuficiente, em extremos que antigamente poderiam ocorrer de 10 em 10 anos ou de 50 em 50 anos, mas que agora serão quase tão comuns como incêndios nas redes sociais.

Sabemos de antemão que a devastação de ecossistemas favorece a proliferação de doenças infecciosas e que a escassez hídrica e a insegurança alimentar são bons combustíveis para reavivar conflitos latentes e rancores antigos. Tudo somado, espera-nos uma espécie de inferno violento, vagamente habitável, com requintes provavelmente nunca vistos nos últimos 3 milhões de anos, com menos terra fértil e produção agrícola irregular, propenso a secas severas com dilúvios por intervalo, e perfeitamente incapaz de sustentar oito mil milhões de bocas e de almas.

Um lugar à sombra

Nos países desenvolvidos sofremos estoicamente com o drama das prateleiras cheias e carteiras vazias, mas iremos aprender que crise há só uma: a das prateleiras vazias e carteiras irrelevantes. Mesmo assim, continuaremos a gozar de uma abundância relativa, ainda que intermitente, graças à capacidade das instituições e ao facto de as nossas latitudes serem inicialmente menos afectadas pela ira climática.

Portanto, os nossos países serão o Shangri-La para os escorraçados do clima insatisfeitos com o papel de pobrete-alegrete que lhes coube, e que atravessarão mares e desertos, perecendo neles aos milhares, para trepar muros e saltar arame farpado. Será o exacerbar de duas pulsões humanas em eterno conflito: por um lado, a procura por uma vida melhor, acalentada pela esperança que nos alumia, e a revolta contra a sina que se nos ferrou no berço e só na cova nos larga; pelo outro, o direito à defesa da estabilidade do território, da prosperidade dos nossos filhos e da cultura dos nossos pais.

Devemos saber articular ambas as sensibilidades e não perder o sentido moral à medida que a desertificação avança e as migrações se intensificam em direcção às latitudes mais altas, e também não devemos abdicar, caro leitor, da nossa tenacidade e sagacidade quando, junto com tunisinos, senegaleses, etíopes e muitos outros, assomarmos às muralhas do Norte da Europa.

A esperança é a última a derreter

Sempre soubemos que as acções tem consequências e há 50 anos que suspeitamos que — surpresa! — com o clima não é diferente, e no entanto empurramos com a barriga e continuamos a empurrar com a barriga. Pois bem, eis que a factura está aí para ser paga e outras chegarão no futuro.

Se os negacionistas estiverem certos, que triste figura faremos com os nossos espaços limpos e salubres, estilos de vida saudáveis, economias circulares, tréguas feitas com a natureza… Mas esse é um risco que não podemos deixar de correr.

Há de facto incertezas nas projecções do IPCC e é possível que estejam até certo ponto erradas, mas infelizmente há uma probabilidade muito maior de, ao errarem, errarem por baixo (ver C.3.4 do SPM). Qualquer subestimação dos efeitos na circulação termohalina, no derretimento do permafrost, nas cianobactérias, etc, pode… adiante!

Que a Racionalidade finalmente nos perdoe e que a Fortuna não tome armas contra nós para que ainda consigamos evitar o pior — e o pior, diga-se figurativamente, é os mortos erguerem-se dos túmulos para se banquetearem da carne dos vivos.