Está em curso um massacre na aprendizagem das crianças em idade escolar. Vou poupar o leitor aos dados comparados, aos estudos internacionais e às análises de impacto — pode, por exemplo, encontrar pistas a partir deste artigo, pois já os mencionei repetidas vezes ao longo destas semanas e lamento se começo a soar como um disco riscado. Vou só acrescentar o seguinte: depois de se ter precipitado no prolongar do encerramento das escolas básicas até Setembro, o governo está a falhar na elaboração de um plano de retoma e recuperação na educação, incapaz de lhe atribuir a prioridade que o tema justifica. E custa constatar que o país assiste impávido enquanto o futuro dos nossos jovens está ameaçado.

Vivemos num contexto adverso que, em Março, forçou o encerramento momentâneo das escolas. Mas as políticas públicas servem precisamente para encontrar soluções para os desafios existentes. Por toda a Europa, as escolas fecharam mas, logo depois, os sistemas educativos foram desafiados a encontrar soluções para a reabertura. Em França, o anúncio de encerramento de escolas veio acompanhado da promessa de aulas de recuperação durante Julho e Agosto. Na Noruega, feita a avaliação do impacto do encerramento das escolas, o próprio governo reconheceu que o prejuízo educativo foi maior do que o ganho para a saúde pública. E esta semana, em Inglaterra, a educação subiu ao cimo das atenções políticas. Após o governo britânico reconhecer que não conseguiria reabrir todas as escolas básicas ainda em Junho, todos se uniram à volta da necessidade de elaborar um plano de recuperação da aprendizagem. Todos mesmo — membros do governo, deputados de vários partidos, sindicatos e agentes educativos: é um país inteiro a exigir que nenhuma criança fique para trás, vítima do que já se chama “epidemia de pobreza educativa”.

E em Portugal? Por cá, o silêncio é duplamente aterrador. Primeiro, o Ministério da Educação não divulgou informação sobre o desempenho do sistema educativo neste período de crise. Não se constroem soluções para os desafios políticos e sociais sem informação e dados. É elementar: sem um diagnóstico sustentado em evidências não é possível determinar o melhor tratamento. Ora, esses dados existem para a saúde (contágios covid-19, cirurgias adiadas ou diagnósticos não realizados), para o emprego (indicadores sobre desemprego e layoff), para a economia (previsões de impacto no PIB) e, em concreto, para os diversos sectores de actividade (desde o turismo ao agroalimentar). Mas esses dados não existem no debate público para os alunos, as escolas e a educação. A pouca informação conhecida surgiu através de fontes secundárias, como a Fenprof, com tudo o que de incerteza isso implica na metodologia da recolha dos dados — e dizem-nos esses dados que mais de metade dos professores não conseguiu contactar os seus alunos, o que, a confirmar-se, é dramático.

Segundo, na oportunidade que teve, o governo não colocou a educação e a recuperação da aprendizagem nas suas prioridades de acção. No Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) recentemente divulgado, entre dezenas de medidas e alocações orçamentais, a Educação ficou reduzida a duas: a “transição digital” (400 milhões de euros) e a remoção do amianto (60 milhões de euros). São ambos investimentos necessários? Sem dúvida. Aliás, há anos que esses investimentos estão em falta: em muitas escolas, o equipamento tecnológico ficou obsoleto há que tempos e a remoção de amianto tem sido sucessivamente protelada. Mas nenhum destes investimentos irá responder às necessidades urgentes dos alunos cuja aprendizagem se degradou estruturalmente nos últimos meses. E se alguém tentar elevar este reforço orçamental na “transição digital” a solução, estará a querer fazer-nos acreditar num mito: que os atrasos na aprendizagem se ultrapassam com um computador novo.

O ponto não é cair em maniqueísmos. Sei que as desigualdades educativas e sociais ampliadas pela Covid-19 também inquietam a equipa governativa da Educação — há dias, num webinar do Conselho Nacional de Educação, o Secretário de Estado João Costa destacou-as de forma lúcida e preocupada. Mas começa a ser indisfarçável um bloqueio político na acção. E, note-se, para construir soluções eficazes não é necessário inventar a roda, basta olhar para o que está a ser discutido internacionalmente: aumento no número de professores para permitir acompanhamentos individualizados, introdução de aulas de recuperação, aposta nas tutorias de acompanhamento aos alunos em risco, alargamento da Acção Social Escolar. E, claro, assegurar as condições para o regresso pleno do ensino presencial. Enquanto vigorarem as orientações de distanciamento social, as salas-de-aula e os espaços físicos nas escolas não serão suficientemente amplos para funcionar “normalmente”, pelo que terá eventualmente de ser planeado o aluguer de outros espaços, onde se possa garantir a continuidade das actividades lectivas presenciais.

Eis o debate que não se fez e eis o plano que ainda ninguém conhece. Nos últimos meses, habituámo-nos a viver com incertezas e, muito possivelmente, estas continuarão a condicionar-nos. Mas, com o passar do tempo e comparando com outros países europeus onde tanto se discute, começamos também a construir certezas. Uma é esta: na educação, o muito que poderia ser realizado para atenuar o dano na aprendizagem e no futuro dos alunos ainda não está a ser feito.

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