Que sentido faz para os não cristãos, para os descrentes, os cépticos e os mais duvidosos que se celebre a Páscoa e se fale em morrer por amor?

E que lógica tem um homem bom e inocente morrer pregado numa cruz?

E que história é essa de ser por mim e, actualizando ao dia, por mais sete mil milhões de outros? E que absurdo é este da Ressurreição? Morreu ou não morreu? Se está vivo, vive onde? E como?

Estas e outras interrogações igualmente pertinentes e absolutamente legítimas povoam o imaginário universal durante este tempo que corre. Mais ou menos indiferentes aos acontecimentos de há dois mil anos, homens e mulheres de todo o mundo acompanham o tempo de Páscoa. Ou seja, têm consciência de que existe, nem que seja porque há férias ou pausa e direito a descanso. Páscoa, para muitos, é sinónimo de férias na neve. Quando está calor, como neste ano, também se pode traduzir numa pequena antecipação das férias de verão, com praia e mar.

Nos telejornais há sempre mais notícias sobre o Papa, sobre o que ele diz e pede, mas também sobre cristãos que celebram a Páscoa de forma intensa e, porventura, bizarra. Habitualmente as imagens que chegam de outras culturas e latitudes mostram rituais brutais que ferem sensibilidades e afugentam eventuais buscadores de Deus, porque os caminhos do calvário revisitados por gente de cara ensanguentada que se autoflagela até à exaustão não apetecem a ninguém. Nem aos crentes.

As perguntas sobre a Páscoa e o sentido com que tudo foi vivido atravessam-nos a todos, pois custa a acreditar no amor perante a crueldade. Interpela-nos tanto a injustiça dos homens como a aparente injustiça de Deus, ao deixar morrer o Seu filho daquela maneira. Acontece que a fé, sem interrogações críticas, facilmente se transformaria em fanatismo. E todos sabemos como os fundamentalismos são perversos e distorcem a percepção da realidade.

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Nunca me foi fácil acreditar em certos milagres e também tive sérias dificuldades para conseguir entrar no espírito da Páscoa. Talvez isso me faça escrever, não sei. Apenas sei que sendo crente, penso muito nos que não crêm. Vejo e sinto por dentro, conseguindo por-me também de fora. Aprendi com bons padres que o maior milagre é o da transformação interior e deixei de tropeçar naquilo que, para mim, era incompreensível e perturbador. Pacifiquei-me. Passei a olhar sem repugnância para um Jesus injuriado, flagelado, e sou agora capaz de enfrentar o Cristo crucificado porque o conheço melhor e o amo mais. Diz bem quem diz que só podemos amar aquilo que conhecemos. É verdade e aplica-se também a Jesus. Sobretudo a Ele.

Puxando o filme atrás, como um flashback no cinema, e recuando três anos antes da última ceia de Jesus, vemos um homem ainda jovem ganhar voz para começar falar às multidões, mas também vemos alguém profundamente inclinado ao silêncio e à intimidade da oração, bem como um amigo dos seus amigos e um aliado dos pobres, aflitos e desvalidos. Um homem que acolhe sem julgar, um coração que ama e revela a substância do amor, um advogado dos que se sentem marginalizados e excluídos, um defensor dos pobres e oprimidos, um justo que impede que se atire a primeira pedra e por aí diante.

Os critérios de Jesus são radicais e intemporais. Justíssimos, afinadíssimos e coerentíssimos, podem não ser adoptados por todos e até ser seguidos por poucos, mas continuam a ser imbatíveis. Jesus diz que não vale o ‘olho por olho’, atravessa todas as realidades com inteira liberdade e recusa todos os rótulos. Apregoa o amor ao próximo, sabendo que o próximo é muita gente. E que alguma desta gente nem sequer apetece ter perto. Estende a mão aos que lha pedem e avança em contra-corrente com confiança, espalhando essa mesma confiança. Contagiando pelo exemplo, interpelando pela acção. A sua bondade, a sua radicalidade e a sua paciência, bem como a sua capacidade de ouvir e estar inteiro nas cenas em que age pela palavra, por obras ou apenas pela presença, dizem muito sobre a sua natureza divina. Todos nós, humanos, temos as nossas incoerências e as nossas falhas; dizemos as nossas mentiras e permanecemos firmes nas nossas inverdades. Ele não. O mais céptico dos homens, o mais cínico e o mais rancoroso, o mais pragmático ou o mais criticista não conseguem encontrar-lhe nada no coração a não ser abertura aos outros. E entrega. E amor.

Neste flashback de três anos de vida pública acontece muita coisa, mas aquilo que mais impressiona é a maneira como resgata, como confia e ajuda a confiar. A sua atitude perante a adversidade, as suas palavras perante a maldade, a coragem com que vive apesar das mentiras e dos perseguidores. E a coerência de vida, sempre a coerência, sem a menor tentação de obter riquezas, lucros ou louros. Ajuda muito perceber a natureza da sua realeza, aliás, pois é nesse interesse pelos outros, nesse estar ao serviço dos que precisam que se revela o abismo de diferenças entre ele e os outros reis. Entre quem busca e exerce o poder, e quem busca apenas a verdade sem exercer poder absolutamente nenhum para além do amor resgatador.

Na última ceia, Jesus baixou-se, ajoelhou-se e lavou os pés aos seus amigos. Mais um gesto incompreensível para alguns deles, na altura, e para muitos de nós, agora. Estranho, alguém se importar tanto com os outros, ao ponto de se rebaixar para lhes lavar os pés sujos. Jesus não tinha uma profissão e muito menos a de pedicure, que é uma especialidade que todos agradecemos que exista e serve a muitos que precisam e pagam por esses serviços. Também não queria chocar nem fazer gestos extravagantes. Queria apenas mostrar como é que se vai ao encontro do outro. Como é que nos fazemos próximos quando os que estão perto precisam de sentir a força reparadora (e interpeladora, insisto) da humildade. O lava-pés revela a realeza de Jesus e prova que a sua magestade foi fazer aquilo que a todos repugnava, dando um exemplo incompreensível de serviço para todos os tempos. “Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”.

Voltando ao início e passados dois mil anos o que é que eu tenho a ver com tudo isto? Talvez perceber melhor que servir os outros é esquecermos-nos de nós, voltando-nos mais para fora, até ao limite das necessidades de quem anda frágil. Esta atitude prevalece em todo o calvário e na cruz. Jesus podia ter-se revoltado ou descartado culpas e era legítimo ter argumentado em sua defesa, uma vez que estava inocente. Ou podia ter fugido e escapado ao trágico desfecho.Também podia ter cuspido e ofendido de volta, lutando e resistindo a deixar-se levar pelos poderosos do seu tempo. No entato, não se lhe ouviu uma ofensa e este silêncio foi mais um sinal de coerência. Usou as palavras com critério, para falar às mulheres de Jerusalém, para falar a Sua mãe e para falar com o Pai. Só amor. Mais nada.

Esta não foi a primeira nem a última injustiça que se cometeu na História. Atrocidades tão grandes ou maiores do que pregar pessoas a cruzes continuam a acontecer todos os dias. Assim como muitas pessoas vivem mortificadas ou a sentirem-se pregadas à sua cruz todos os dias.

Tomás Halík resumiu bem a essência da fidelidade nas situações limite:

“Mas onde é que Deus está, quando não há amor, quando só há crueldade, dor, pecado e sofrimento? Ele está presente na fé e na esperança paciente daqueles que, em tais situações, não se deixaram ultrapassar pelo mal. A crueldade, a dor e a indiferença não só têm os seus perpetradores, embora nem sempre as vejamos ou queiramos ver. As vítimas de violência podem ser sempre atraídas para o círculo da maldade, ansiando por vingança, mas também podem rejeitar esse anseio sinistro”.

Jesus deu também esse exemplo, no auge do sofrimento. E esse é, se calhar o maior enigma de todos. Mais do que tentar compreender o mistério da morte e da vida eterna, o grande enigma da Páscoa passa por contemplar quem, apesar de maltratado, foi capaz de amar e dar tudo até ao fim sem queixas nem vitimizações. Crentes ou descrentes, é impossível ser insensível à força deste amor e desta entrega, porque uns e outros sofrem, ou já passaram por muitos sofrimentos e injustiças, e sabem que a vida só se renova com amor.