Existe atualmente um forte movimento para alterar as regras do concurso nacional de acesso ao ensino superior. A maioria das propostas pretende aumentar a separação entre o trabalho do Secundário e o acesso ao Superior, por exemplo entregando às instituições de ensino superior a responsabilidade de organizarem os seus próprios concursos de acesso, o que aproximará o nosso sistema do modelo britânico.

O sistema proposto tem várias vantagens. Todavia, encontra-se pouca reflexão pública sobre o maior risco inerente a esse novo modelo: o aumento das desigualdades sociais no acesso ao ensino superior, replicando as conhecidas desigualdades tão presentes no sistema tradicional inglês.

A vontade de mudar as regras atuais resulta sobretudo de um compreensível e legítimo desconforto, por parte das escolas secundárias, perante a pressão que o concurso nacional de acesso exerce sobre os seus métodos de trabalho e de avaliação.

Hoje (*), as escolas participam ativamente na preparação dos alunos para os exames nacionais do Secundário, os quais servem também como provas de ingresso para o Superior. Por essa razão, os professores queixam-se frequentemente de que sentem o seu trabalho “refém” da preparação para o Superior, sentindo dificuldade em inovar e trabalhar de forma flexível o currículo do Secundário. Pedem assim alterações nos exames e na organização do concurso para ingresso no Superior.

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Mas tentemos diagnosticar com algum detalhe o que se passa. Em primeiro lugar, é importante notar que a pressão sobre o Secundário não é veiculada só através dos exames nacionais. Por exemplo, as classificações das disciplinas do Secundário sem exame também apresentam fortes sinais de distorção, com indícios de inflação de notas ainda mais vincados do que nas disciplinas com exame.

Por exemplo, segundo os dados divulgados pelo jornal Público relativos às escolas públicas no ano letivo 2019/20, cerca de dois terços dos alunos da disciplina Aplicações Informáticas B obtiveram uma classificação igual ou superior a 18 valores. Na disciplina de Biologia do 12.º ano, também sem exame, quase metade dos alunos (48%) foram classificados com 18 valores ou mais. Estas distribuições de classificações elevadas são inusitadas quando comparamos com as disciplinas com exame ou com todas as disciplinas do ensino básico.

Mas se não são os exames, qual é a fonte original da pressão que causa distorções no ensino secundário científico-humanístico? Pode essa fonte ser facilmente removida ou mitigada?

Na verdade, a pressão resulta do simples facto de existirem vagas limitadas no ensino superior. A maioria dos candidatos ao concurso de acesso não entra no curso ou instituição da sua primeira escolha, o que gera grande competição por algumas vagas, como sucede no caso da Medicina. O sistema de numerus clausus no Superior e a pressão do concurso de acesso sobre os alunos do Secundário são duas faces indissociáveis da mesma moeda. Aumentar o número de vagas é aliviar a pressão, reduzir as vagas é intensificá-la.

Portanto, se se mantiverem as mesmas vagas disponíveis no Superior, a pressão do concurso não desaparecerá com uma simples alteração das regras de ordenação dos candidatos, já que o número de alunos que entra ou fica de fora permanecerá exatamente igual. Se se adotar um método alternativo para ordenar os candidatos, em vez de utilizar as classificações nos exames e das notas internas do Secundário, a pressão apenas se deslocará para o novo método de seriação, seja ele qual for. Muda o instrumento de aplicação da pressão, mas esta mantém-se.

Por exemplo, se a opção for adotar um mecanismo de acesso em que as instituições de ensino superior aplicam os seus próprios exames de entrada, ou fazem entrevistas e análise curricular dos candidatos, então certamente que os alunos do Secundário começarão a dedicar muito do seu tempo à preparação desses novos exames e entrevistas, pois eles é que decidirão o seu futuro, em vez das classificações do Secundário. Os alunos darão menos atenção ao que é ensinado na escola e surgirão novos serviços de apoio à preparação dos exames específicos das faculdades X, Y e Z. Em paralelo, alguns alunos conseguirão contratar serviços de treino para entrevistas e de redação de cartas de motivação; surgirão serviços que organizam estágios de verão e voluntariados para enriquecer o currículo dos candidatos antes do concurso de acesso, etc.

Embora esta não deixe de ser uma evolução interessante, o problema de tudo isto é o enorme risco de aumento da iniquidade social, pois só uma minoria de alunos com recursos financeiros poderá recorrer a ajudas externas para preparar os conhecimentos e competências que são decisivos para os concursos das faculdades X e Y mas quase não são trabalhados na escola secundária pública.

Isto já acontece atualmente, por exemplo, no Reino Unido, onde o sistema de ensino tem um forte grau de iniquidade social. Um estudo recente mostra que, entre 2015 e 2017, oito colégios privados de elite conseguiram colocar tantos alunos nas universidades de Oxford e Cambridge como o conjunto das 2900 escolas secundárias inglesas menos cotadas, que representam 75% do sistema. Estes colégios de elite dão treino específico para os diferentes exames e entrevistas das instituições de ensino superior; oferecem estágios e atividades extra-curriculares vistosas que impressionam em qualquer avaliação curricular; têm tutores e redes de antigos alunos que explicam desde cedo aos mais novos o que é necessário fazer para entrar nos cursos das melhores universidades; etc. A grande maioria das escolas públicas, tendo menos meios, não consegue oferecer o mesmo, e os seus alunos ficam para trás.

Para contrariar as fortes desigualdades geradas pelo seu mecanismo de acesso, muitas universidades inglesas e norte-americanas recorrem à imposição de quotas de entrada para alunos de minorias desfavorecidas, o que também gera as suas próprias controvérsias.

Por fim, há que lembrar que num sistema com muitas provas diferentes e inúmeros júris locais, distribuídos por um número elevado de instituições, obviamente é mais difícil garantir a transparência e isenção de todos os processos de seleção. Nos EUA, é frequente virem a público, com algum estrondo, casos de favorecimentos internos ilegais para entrada em certas universidades (exemplos aqui e aqui).

Esta dicotomia entre sistemas de acesso ao Superior, cada um com os seus prós e contras, é em grande medida inevitável. No limite temos:

Sistema 1) Concurso de acesso ao superior mais centralizado, como o atual em Portugal, baseado no que é ensinado e avaliado no ensino secundário geral. A avaliação é igual para todos os candidatos e o peso da preparação para o concurso é partilhado entre o aluno e a escola secundária. A escola sente-se refém dessa tarefa. Existem serviços adicionais de explicações fora das escolas, mas todos os alunos têm um mínimo de apoio dentro da escola para desenvolver todos os conhecimentos e competências avaliados no concurso.

Sistema 2) Concurso aplicado por cada instituição de ensino superior, segundo regras e exames próprios, que podem invocar conhecimentos, competências ou atividades curriculares interessantes mas menos trabalhadas nas escolas secundárias públicas. A escola secundária participa menos na preparação para o concurso e sente-se livre para inovar. Contudo, o peso da preparação não desaparece e recai inteiramente sobre os alunos e as suas famílias. Serviços externos e escolas de elite especializam-se na preparação dos conhecimentos e competências extra-curriculares que certos cursos superiores exigem. Quem não tem acesso a recursos educativos fora da escola pública fica em ainda maior desvantagem.

É inteiramente compreensível que a atual escola secundária deseje ser mais autónoma e se ressinta da ingrata tarefa de preparar alunos para o acesso ao Superior. Todavia, é importante estar ciente que cerca de 90% dos alunos que terminam o ensino secundário científico-humanístico de facto vão para o ensino superior (Transição entre o Secundário e o Superior – 2018/2019 > 2019/2020 na página da DGEEC). Portanto esta preparação é uma necessidade real para a esmagadora maioria dos seus alunos, à qual a escola não deve voltar a face. Se a escola pública evitar participar no processo, então não só se tornará menos relevante para a maioria dos seus alunos, como o peso da preparação recairá inteiramente sobre os jovens e respetivas famílias, e sabemos as desigualdades sociais que isto gera.

Não se pretende com isto afirmar que as regras dos atuais exames e concurso nacional de acesso são perfeitas, não podendo ser melhoradas. Por exemplo, se o Secundário quer evitar o indesejável afunilamento curricular resultante de um treino por vezes de repetitivo e mnemónico para os exames, um primeiro passo seria a elaboração de provas nacionais do Secundário com algumas componentes menos previsíveis e treináveis, valorizando mais o pensamento autónomo, a resolução de problemas e uma visão lata do currículo. Isso desincentivaria o treino por simples memorização ou repetição, estaria de acordo com os princípios traçados nos documentos oficiais do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, e as instituições de ensino superior certamente apreciariam a evolução.

O ponto principal, contudo, é que eventuais alterações da avaliação para acesso ao Superior devem sempre envolver a escola secundária e, por essa via, refletir-se na preparação de todos os alunos, pobres ou ricos. Não devem ser alterações promovidas avulso por cada instituição de ensino superior, perante o alheamento voluntário da escola secundária pública e deixando em desvantagem os alunos que só a esta podem recorrer. Há que pesar os prós e contras de cada sistema de acesso, certamente ninguém quer uma mudança que agrave ainda mais as desigualdades de oportunidades dos jovens.

(*) Sistema ainda vigente mas interrompido temporariamente em 2020, durante a pandemia, devido à não aplicação dos exames nacionais do ensino secundário.

Subdiretor da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência entre 2013 e 2020

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.