Gregório Potemkin era um homem admirável. Alto, magnético e enigmático na sua personalidade complexa. Provavelmente seria bipolar, passava rapidamente da euforia à depressão e vice-versa. Tornou-se amante de Catarina, a Grande e ter-se-ão casado em segredo na noite de 5 de Junho de 1774. Dominador e arrogante, trabalhava muito, ao mesmo tempo que era boémio e devasso. Rodeou-se de riquezas para melhor assinalar e salvaguardar o seu poder. Gastou ainda mais. Foi o responsável pela expansão do império russo na costa norte do Mar Negro, hoje território ucraniano que a Rússia de Putin quer tomar. Tirando Catarina, a quem obedecia por ser imperatriz, Potemkin não aceitava uma mulher como igual ou superior.

John Adams tinha uma personalidade bastante diferente. Casou-se com Abigail Adams, mulher que amou até ao fim e cuja inteligência respeitava e considerava. Não tinha dívidas e jamais teve escravos, sustentáculo de muitas das fortunas de então. Gostava de ler, de escrever e de comprar livros. À data da sua morte, a sua biblioteca era uma das mais extensas e diversificadas dos EUA. Apesar destas características de homem simples, Adams era determinado. Foi dos primeiros a defender que as colónias norte-americanas deviam declarar a independência e unirem-se num estado federal. Fê-lo com perfeita consciência dos riscos, mas sem medo de os enfrentar porque entendia que seria pior não o fazer. Veemente nos discursos, era conhecido por teimoso e, por vezes, intransigente ao não ceder em questões de princípio ou que considerava fundamentais. Por isso mesmo foi acusado de monárquico quando, novamente quase sozinho, criticou a Revolução Francesa e afirmou que os EUA deviam aproximar-se do Reino Unido. À semelhança de Potemkin, defendeu o investimento na marinha. No entanto, e ao contrário do russo, convenceu os seus colegas por via da arte da argumentação (os navios de guerra seriam uma garantia da independência e da neutralidade norte-americana) e não pelas suas ligações com a imperatriz ou por aniquilar os seus adversários políticos.

As diferenças entre Potemkin e Adams retratam não só dois países diversos, mas duas formas de governo opostas: a autocracia russa e a democracia norte-americana. São bússolas pelas quais Rússia e EUA se podem guiar e saber o quanto se afastam (ou não) do caminho inicialmente trilhado. As diferenças são de tal forma que as qualidades de John Adams, indispensáveis para que fosse bem-sucedido na democracia norte-americana, ser-lhe-iam fatais na Rússia. Na corte russa, Adams não passaria de um serviçal a que o primeiro erro faria, literalmente, saltar a cabeça. Da mesma forma, o que celebrizou Potemkin na Rússia condená-lo-ia ao ostracismo em Nova Iorque, Filadélfia e, mais tarde, em Washington. Os seus modos seriam inaceitáveis, poucos confiariam nele e ninguém o seguiria. Dito de outra forma: as autocracias dificilmente permitem governantes como     Adams e as democracias indivíduos como Potemkin.

O que faria Potemkin se actualmente estivesse no Kremlin? O que faria Adams se hoje fosse congressista ou até mesmo presidente dos EUA? É impossível imaginarmos quais seriam no século XXI as decisões de homens do século XVIII. Mas podemos estar certos que não vacilariam na defesa dos interesses dos seus países. Muito provavelmente, Potemkin combateria no sul da Ucrânia pelas cidades que criou. Quanto a Adams defenderia com garra a democracia norte-americana, procurando equilíbrios mesmo que à custa de consensos tirânicos. Não teria medo das palavras, mas utilizá-las-ia com inteligência. Defenderia sem receio a liberdade. Era um homem sensato que fundamentava com o estudo os seus instintos de justiça.

As características de Adams e Potemkin também são importantes porque tanto a autocracia russa como a democracia norte-americana atravessam testes difíceis: a Rússia envolveu-se numa guerra de que muito dificilmente sairá sem marcas nas próximas décadas e os EUA receiam mais ataques à democracia semelhantes aos ocorreram em 6 de Janeiro de 2020.

É neste ponto que importa a comparação entre os dois. John Adams foi dos primeiros a defender a independência face ao Reino Unido, anteviu os EUA como potência marítima, percebeu que o fim da escravidão era uma batalha a ser travada pela geração seguinte, considerava o endividamento perigoso e o ensino e a instrução as bases de uma sociedade saudável e capaz. Apreciava o comércio que via como sustentáculo das liberdades políticas e sociais. Gostava de discutir, mas respeitava o outro. Tinha uma profunda noção da complexidade humana e encarava a vida como um caminho difícil, mas compensador. Era alguém cuja opinião e carácter adquiririam hoje um valor incalculável. Já Potemkin é um alerta para o perigo do exercício do poder sem qualquer freio.

Até na morte divergiram com o russo a perecer à beira de uma estrada, um percalço na sua luta para ser obedecido. Catarina deverá ter sido das poucas pessoas a chorá-lo. A 4 de Julho de 1826, Adams faleceu em casa com 90 anos, rodeado pela sua família. Esta não quis um funeral público em respeito à vontade do ex-presidente, mas David McCullough conta que os sinos tocaram, ouviram-se disparos de canhões e multidões vieram de Boston e das localidades próximas. Na missa, o padre leu: “He died in good old age, full of days…and honor”.

Recordo estas duas personagens porque nos ajudam nas escolhas que temos de fazer no tempo presente. É que o mundo em que vivemos molda o carácter das pessoas mas, ao fim e ao cabo, somos nós que definimos o mundo em que queremos viver.

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