Assistir a um debate parlamentar, como ontem, quase por acaso, me aconteceu, não é uma prenda dos deuses. Não é sobretudo nada que nos esclareça o que quer que seja sobre o estado da nossa sociedade, o que, apesar de tudo, podia ser. A não ser, é claro, pela negativa. O que se ouve é uma chuva quase ininterrupta de chavões que se engendram monstruosamente uns aos outros, todos eles sem o mais vago contacto com a realidade, resistindo soberbamente a qualquer ténue suspeita de originalidade. Percebe-se que ninguém leve aquilo muito a sério, como ninguém leva muito a sério a querela entre Santana Lopes e Rui Rio para a chefia do PSD. Num caso como noutro, já ouvimos a conversa. Porquê perder tempo? Acaso o nosso destino, por causa daquilo, vai mudar?

Há, apesar de tudo, luzinhas bruxuleantes em algumas daquelas vozes que repetem ladaínhas antiquíssimas com a intensidade de um grupo de mortos-vivos que decidiu perturbar o sossego dos pacatos mortais do dia-a-dia. As luzinhas revelam como um particular entendimento da sociedade, do Estado e da história continua bem presente entre nós, resistindo aos desmentidos todos com que o tempo generosa e abundantemente lhe respondeu. E vêm, como de costume, daquilo que se convencionou chamar “esquerda”.

Se me é permitida uma confissão pessoal, não há nada, no plano ideal, que me torne a esquerda um objecto inato de detestação. Pelo contrário. Há, ou havia, nessa entidade assim nomeada uma promessa de liberdade, incluindo a liberdade dos costumes e de escolha da vida que se quer, como se diz, levar, que eu não posso, nem quero, esquecer. E a coerência é, dentro de certos limites impostos pelo atrito da realidade, da “rugosa realidade a abraçar”, como escrevia Rimbaud, algo que se deve buscar. Não sem dúvida a coerência incoerente e regressiva daqueles que voltam às pretensas certezas indiscutíveis da juventude como quem refaz uma virgindade perdida, o que é sempre patético, mas uma coerência no entendimento geral das coisas, capaz de transigências com o acessório. Sem a busca dessa coerência não somos mais do que máquinas de palavras.

O problema com uma boa parte da esquerda é quando se passa do plano ideal para o plano empírico, algo que as luzinhas bruxuleantes do debate parlamentar de ontem revelaram bem. E revelaram-no não apenas na fixação estatista que é o adorno que a esquerda sempre traz na lapela, mas também noutro aspecto que, por ser menos óbvio, não deixa de ser essencial. A fixação estatista já é em si uma desgraça que muito mal nos fez e certamente muito mal nos fará. Bloco, PC e PS, pelo menos o PS mais visível por estes já muito longos dias, não tiram o Estado da boca. Tudo o que mexa fora dele merece uma cura de arsénico burocrático intensiva. E para constatar isto não é necessário ver no Estado, simetricamente, a fonte de todos os males. De modo nenhum. A discussão sobre o peso e a dimensão do Estado é uma conversa muito antiga e que merece ser constantemente renovada. Só a chuvada verbal a que estamos quotidianamente sujeitos impede que uma conversa séria tenha lugar. De resto, a chuvada tem exactamente por finalidade impedir a conversa. É uma tristeza uma pessoa apanhar-se a ter de falar regularmente de Catarina Martins (eu ainda tenho momentos em que a coisa me parece surrealista), mas não se consegue ouvir a senhora sem uma espécie de guarda-chuva mental. A intensidade da chuvada é tanta que quase funciona como argumento a favor das alterações climáticas.

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Como se isto não bastasse, há o outro aspecto que mencionei antes e que por estes dias, por cortesia do génio político de António Costa, saltou de novo, vindo das cavernas mais escuras, para a boca de cena. Refiro-me à concepção da história como um progresso necessário em direcção a um fim pré-determinado. Como se sabe, é a doutrina mais férrea do PC, inspirada numa monstruosidade teórica do marxismo, que por sua vez a adaptou de outras várias fontes, vestindo-a esmeradamente de “ciência”. Não se trata apenas de procurar fazer sentido do que acontece, algo a que qualquer pessoa que pense não se pode, numa escala ou outra, esquivar. Trata-se de ver a história como intrinsecamente (constitutivamente) dotada de sentido, e de sentido na dupla acepção da palavra: direcção e inteligibilidade. Isso que o PC jura todos os dias, o Bloco, sob a cortina mais ou menos “pós-moderna” das “causas fracturantes”, também o faz. E, desgraça das desgraças, o PS ajuda no delírio.

Esqueçamos o Bloco, do qual, peço desculpa pela franqueza, estou farto. Centremo-nos no PS. Como os caminhos do PS português não são muito diferentes, sob muitos aspectos, dos do francês, e como os franceses são mais dados do que nós aos encantos da teoria, pensemos no que nos disseram os chefes do PS francês pelo século XX inteiro. Não houve praticamente líder algum que não subscrevesse o essencial do marxismo no que respeita ao sentido da história. E, concomitantemente, que não visse a “democracia formal” como uma etapa provisória no curso da humanidade, a ser superada por uma sociedade onde a questão política se colocaria de modo inteiramente distinto. Último notável dessa distinta linhagem, Mitterrand não se absteve desse tipo de propósitos.

Não digo que os chefes do nosso PS caseiro, por razões diferentes cada um deles, a começar por Mário Soares e a acabar no presente Costa, jurassem ou jurem por essa tradição marxista. Ou por instinto democrático (Soares), ou porque outros mais sublimes sentidos os ocupavam (Guterres), ou porque o espírito espontaneamente voava para outros objectos (Sócrates), a doutrina nunca mereceu grande relevo. Mas, sob uma forma difusa, ela está lá. Apesar de tudo o socialismo, a bem da humanidade, deve substituir, tem de substituir, o capitalismo. Não deve? Não tem?

Certamente que há no PS muita gente que não cai nesse particular logro teórico, mas o arranjinho de Costa com o PC e o resto faz com que se sinta nas tais luzinhas bruxuleantes do parlamento e noutros lugares o peso da tradição. Ora, a tradição não tem desgraçadamente uma dimensão puramente teórica. A convicção, mesmo difusa e se calhar inconsciente, de que a história se encaminha necessariamente para um fim indisputável, tem efeitos práticos. Não falo sequer da permanente superioridade moral que a esquerda ufanista se atribui a si mesma. Isso a gente, que remédio, aguenta. Falo de duas outras coisas, bem mais graves.

A primeira é a tendência, mais ou menos persistente, para encarar de uma forma, digamos, relaxada, os aspectos mais formais da democracia, ou de os repeitar apenas (é o caso do PC) com doses colossais de reserva mental. A segunda é a curiosa forma de irresponsabilidade a que conduz a confiança de que a história se encontra, como dizia o outro, a caminhar na direcção para a qual o nosso sofá se encontra virado. No PC e no resto essa irresponsabilidade, se perfeitamente libertada, conduziria num piscar de olhos Portugal à miséria mais extrema. A beleza da sociedade futura é evidente e não necessita de longas explicações: as incoerências da sua concepção acabarão por se resolver de um modo ou doutro. No caso do PS, os riscos dessa irresponsabilidade atingir proporções cósmicas são obviamente mais diminutos, dada a pluralidade doutrinal que, apesar de tudo, aí existe. No entanto, o caminho seguido por Costa com o seu arranjinho, milita declaradamente contra a responsabilidade e muita gente por aquelas bandas não anda longe das crenças da esquerda mais extrema.

Li no outro dia numa biografia de Balzac que num dos seus primeiros romances, prévio à Comédia humana e escrito sob pseudónimo, onde o número de personagens e a complexidade do enredo provocavam incoerências várias, Balzac escreveu umas linhas introdutórias onde se dizia mais ou menos isto: “Estou perfeitamente consciente que a presente obra contém muitos equívocos e inconsitências. Prometo dar resposta a todas as dúvidas quando o livro chegar à quinta edição”. O problema com a extrema-esquerda, e com a esquerda do PS que a segue, é que os desastres vão em muito mais que cinco edições. E ninguém se preocupa verdadeiramente em dar respostas.