1 O sociólogo alemão Max Weber distinguia o mundo privado do mundo público-político através de dois conceitos: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. A primeira pertence à vida privada porque se baseia numa escala de valores (religiosos, culturais, etc.) que precede e influencia as ações dos indivíduos, enquanto a ética da responsabilidade concentra-se nos resultados e consequências das ações — como é próprio do mundo político. Sendo lógico concluir que os cidadãos destinatários das decisões dos políticos não são homens perfeitos, então os políticos não podem lançar em “ombros alheios as consequências previsíveis das suas próprias ações”, dizia Weber.

Não é propriamente uma surpresa mas se há coisa que marca o mandato de António Costa como primeiro-ministro é precisamente o seu afã em descartar responsabilidades quando aparecem problemas. Foi assim com os incêndios trágicos de 2017 em que morreram mais de 100 pessoas, foi assim com o assalto a Tancos, foi assim com as consequências do baixo investimento público derivado da política de cativações de Mário Centeno e começou a ser assim com a crise pandémica.

Basta ver o que aconteceu na habitual reunião do poder político com os técnicos do Instituto Ricardo Jorge e da Direção-Geral de Saúde (DGS) no Infarmed que ocorreu na última quarta-feira. Tal como o Observador noticiou, os especialistas explicaram que a subida dos casos diários na região de Lisboa tinha como causa a “coabitação”, o “contexto laboral” e o “contexto social”. De forma resumida, os surtos de infeção em Sintra, Amadora ou Loures têm a ver com situações de pobreza em que as habitações estão sobrelotadas e na falta de transportes públicos, como José Manuel Fernandes já tinha antecipado aqui. A tese dos jovens e dos testes (que têm uma das taxas de infetados mais altas da Europa) de António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa caiu assim por terra.

A essa informação essencial somou-se o relato da revista Visão que descreveu um puxão de orelhas de António Costa à ministra Marta Temido e uma reação áspera do primeiro-ministro a uma crítica (legítima) do representante do setor do turismo. Pior: exasperado com os especialistas, Costa terá dito que, se algo falhar, “a culpa não será sua” porque os especialistas não estão a ser claros na interpretação dos dados.

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2E, verdade seja dita, a responsabilidade é mesmo sua. É claro para todos que o Governo não reforçou convenientemente a capacidade de resposta das estruturas de saúde pública para a fase de desconfinamento. Preferiu surfar os resultados positivos do ‘milagre português’ em vez de preparar o futuro.

Vamos a exemplos concretos. Se, como António Costa está sempre a dizer em loop, era natural que os números de infetados subissem com o desconfinamento e se a estratégia era de testar, identificar e isolar, porque razão não foi feito um reforço das equipas dos inquéritos epidemiológicos — que entrevistam os novos infetados e tentam reconstituir as cadeias de transmissão? Como é possível, como o Expresso noticiou este fim-de-semana, só na Amadora tenha existido cerca de 100 casos que não tiveram qualquer rastreio por falta de funcionários — que foram pedidos logo em maio? O que andaram a fazer a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a DGS? Pediram o reforço de verbas ao Ministério da Saúde e este às Finanças? E, se pediram, esse reforço foi autorizado ou negado? Muitas perguntas por responder quando sabemos hoje que os especialistas da DGS e do Instituto Ricardo Jorge calculam que 15% a 20% dos novos casos não tiveram controlo da cadeia de transmissão.

Só depois da notícia do Expresso (que deve ser lida e relida por ser um retrato fiel da incompetência do Governo, para dizer o mínimo) é que o Ministério da Saúde correu a anunciar a contratação de 120 profissionais para reforçar a área da saúde pública em Lisboa e Vale do Tejo. E já agora: esse número chega quando o Reino Unido contratou 18 mil funcionários para todo o país, a Espanha 770 profissionais só para a região de Madrid e a Alemanha quer ter um rastreador por cada quatro mil cidadãos. Eis mais um dado que volta a demonstrar que Portugal está muito longe de estar preparado: no concelho da Amadora, um dos mais afetados pelos novos casos desde maio, há um rastreador para cada 36 mil habitantes, segundo Expresso.

Outra falha identificada pelos especialistas — que também não é do agrado do primeiro-ministro, claro — prende-se com os transportes públicos. Ao contrário do que foi prometido pelo Governo, os transportes não foram obviamente reforçados na medida das necessidades da população. Resultado: o número de transportes em operação não consegue evitar autocarros, comboios e carruagens de metro apinhados de gente na hora de ponta.

E escusa o Governo de vir derramar lágrimas de crocodilo: esta também é a consequência da política das cativações de Mário Centeno e que levou o investimento público do período 2015/2019 a valores mais baixos do que o período da troika.

Mais uma falha no planeamento: a app de contact tracing só vai estar disponível entre 15 de julho e o início do Agosto. Esta deveria ter sido uma prioridade do Executivo para termos uma aplicação informática disponível entre maio e junho para realizar os rastreios de infetados — tal como já acontece na Alemanha e noutros países — e ficarmos menos dependentes dos inquéritos epidemiológicos que são muito mais demorados e sujeitos a falhas humanas. E deveria ter sido uma prioridade igualmente junto da Comissão de Proteção de Dados (uma estrutura conhecida por obstaculizar em vez de colaborar construtivamente) face ao momento especial que atravessamos.

Estas são questões concretas às quais António Costa não pode escapar e que demonstram a incompetência do Governo para antecipar os problemas e organizar uma resposta eficiente ao óbvio aumento de infetados que o desconfinamento traria sempre.

3

É imperioso que o Governo mude a sua forma de atuar, sob pena de amanhã a situação não se restringir única e exclusivamente a Lisboa e Vale do Tejo. Veja-se o caso do Algarve — que conheço bem por ser a minha terra. O turismo deste Verão, nomeadamente durante agosto, deve-se restringir ao turismo nacional — até pela impossibilidade dos portugueses realizarem férias noutros destinos.

Ora, a região do Algarve tem más infra-estruturas de saúde como é do conhecimento comum de qualquer algarvio ou residente. Pior: tem um défice crónico de médicos desde há longos anos, razão pela qual no Verão (quando a população no Algarve duplica ou triplica) a ARS do Algarve costuma reforçar os quadros clínicos dos hospitais da região. Pois sabe o caro leitor quantos médicos foram pedidos à ARS do Algarve? Menos do que no ano anterior: 60 este ano contra 66 em 2019.

Lembra-se do alerta do responsável regional da Ordem dos Médicos, de que o Algarve podia fechar com cerca de 100 casos, alerta que foi automaticamente classificado de “alarmista”? Basta ler a entrevista que Alexandre Valentim Lourenço deu então Diário de Notícias para perceber que os alertas deixados por aquele médico estão fundamentados e merecem uma redobrada atenção. Mas se lermos as reações dos responsáveis da autoridade de saúde, percebemos facilmente que pouco ou nada está a ser feito em termos de planeamento para conter um mais do que óbvio aumento de casos no Algarve, nomeadamente em agosto.

Fica aqui feito o alerta para ver se o Governo reage e antecipa o perigo que pode representar o mês de agosto para o Algarve.

4 A história ainda não acabou, caro leitor. Vinte e quatro horas depois de ter zurzido nos cientistas na reunião do Infarmed por não apresentarem respostas conclusivas (e, porventura, por não assumirem a sua responsabilidade), António Costa lá decidiu colocar o país a várias velocidades, destacando-se a manutenção do estado de calamidade para 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa.

Esta decisão já devia ter sido tomada há pelos menos duas ou três semanas quando o número de infetados na região de Lisboa já era consistentemente elevado desde maio. A consequência dessa inação é que os números não param de subir: a semana passada, bateu-se o recorde de números diários desde 8 de maio por duas vezes com mais de 450 casos. Foi a pior semana desde o final de abril.

E, já agora, alguém deu pela existência do “gabinete regional de intervenção em Lisboa e Vale do Tejo para suprir a Covid-19” anunciado pela ministra Marta Temido a 10 de junho e liderado pelo médico Rui Portugal? E essa estrutura está coordenada com o secretário de Estado Duarte Cordeiro, que aparentemente também é o coordenador regional de Lisboa e Vale do Tejo no combate à pandemia, e que fez um anúncio discreto mas importante de “partilha de responsabilidades” (a tal palavra maldita para António Costa) entre as autoridades de Saúde e da Proteção Civil em Lisboa? Convinha que as duas estruturas não se atropelassem.

Comprovando que esta foi a pior semana de António Costa em largos meses, o líder socialista deu uma entrevista este domingo ao jornal catalão La Vanguardia em que afirma que o problema da região de Lisboa está concentrado  nos bairros periféricos de Lisboa e não no centro da capital. A treta de António Costa (tão realista quanto a dos testes e a dos jovens) desconstrói-se facilmente se falarmos apenas dos trabalhadores da construção civil e funcionários de serviços que, como acontece em qualquer capital europeia, se deslocam diariamente dos bairros periféricos para o centro da cidade. Portanto, há um perigo de contágio inerente à mobilidade destes trabalhadores que não permite ao primeiro-ministro afirmar que o problema só existe na periferia da Grande Lisboa.

5

Quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o próprio António Costa reconhecem finalmente que o “milagre português” desvaneceu-se (bem vistas as coisas, nunca existiu) e que a subida constante dos números diários da situação epidemiológica nacional é preocupante, seria bom termos um primeiro-ministro fiel à nobreza do seu cargo e que assumisse, como líder que deveria ser, as responsabilidades das suas ações ou das suas omissões.

Infelizmente, para Portugal não é esse o tipo de líder que nos calhou na rifa. Em vez de um primeiro-ministro com ética de responsabilidade, temos António Costa a apontar o dedo a tudo e a todos, menos a si próprio — o primeiro e o último responsável pelo Poder Executivo.

PS – Mais do que os péssimos resultados nas sondagens, o definhamento do PSD de Rui Rio revela-se nas estruturas. Quando três concelhias da distrital social-democrata do Porto, a maior do país, não têm candidatos, isso é um forte sinal de desmobilização dentro do próprio partido. A acompanhar.