Durante muitos anos, a palavra “ideologia” esteve quase ausente da Europa. Regressou esta semana quando a Polónia e a Hungria vetaram o orçamento plurianual da União Europeia, bem como o pacote de ajuda financeira para alívio das crises sanitária e económica, o Programa de Recuperação e Resiliência, que deveria entrar em vigor em janeiro. Razão? As condicionalidades. Os fundos vêm com um mecanismo que obriga os Estados-membros a respeitarem o Estado de Direito.

Ainda que considere que o purismo europeu é muitas vezes contraproducente, entendo, como já escrevi aqui em tempos, que estes fundos (bem como a mutualização da dívida, que precisou de muitas rondas diplomáticas que devem ter feito cabelos brancos a muita gente) constituem uma espécie de Plano Marshall para a Europa.

Confrontada com a sua dependência das cadeias de distribuição de bens tão essenciais como alimentos e medicamentos, a Europa precisa urgentemente de se reinventar. E essa reinvenção não passa pelo fechamento dos mercados: passa por uma estratégia de reindustrialização, onde a produção não pode estar desligada do desenvolvimento tecnológico nas suas várias vertentes (área em que a Europa também não tem passado com distinção).

Daí que os Estados-membros tenham tido que apresentar os seus planos de desenvolvimento e modernização: para criar uma certa complementaridade que garanta que, no seu todo, a Europa no futuro seja mais autónoma, logo, mais resiliente. E, como nos explica a História, uma empreitada destas precisa de uma certa harmonia entre as partes, desde logo, na forma como pensam a legitimidade democrática.

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No entanto, para a Polónia e a Hungria, fazer os fundos – e todo o desenvolvimento e reinvenção da Europa – depender do respeito pelo Estado de Direito parece inaceitável. A Polónia diz que esta regra viola a sua soberania e a Hungria diz que se trata de chantagem política. Bruxelas apressou-se a pôr paninhos quentes, dizendo que o problema será resolvido. Também estou convencida que sim. O que está em jogo é demasiado importante, e alguém irá ceder, provavelmente com a ajuda da introdução de umas quantas alíneas, ou mudanças eufemísticas de termos, para que se salvem algumas faces. Não foi assim nas duríssimas negociações de julho?

A questão de fundo é outra. A União Europeia é um clube com direitos e deveres e com a porta aberta para quem quiser sair. Mas Varsóvia e Budapeste têm que ficar. A sobrevivência dos seus regimes precisa da existência de um “Outro” que os proíba de ser o que querem ser. E esse outro não é mais do que a União Europeia. Caso se separem, perdem importância no xadrez internacional e, principalmente, legitimidade interna. Perdem também a razão de existir nos termos políticos atuais. Precisam mais da Europa do que a Europa precisa deles.

Dentro de alguns dias, quando tudo isto se resolver – e principalmente quando os fundos começarem a vir – este incidente vai desaparecer da agenda mediática. Mas abriu um precedente que já era expectável, mas que podia ser ignorado até se tornar tão evidente.

Há um problema de fundo que é preciso resolver. A Europa precisa de robustez para o que aí vem e ter permanentemente enfants terribles a atropelarem a democracia e a estragarem os planos supranacionais tende a tornar-se um elefante na sala difícil de ignorar. A União Europeia tem agora que responder a uma pergunta profundamente incómoda: é mais branda nas suas exigências com os Estados-membros e consegue ser uma instituição mais ágil, ou não abdica de princípios fundamentais, correndo o risco de ruturas necessárias para manter a normatividade e a homogeneidade?

A pandemia acelerou tendências no sistema internacional. Agora é menos liberal e mais competitivo. Era natural que uma pedra no sapato desta mesma natureza chegasse à Europa, mais tarde ou mais cedo. A questão é que, caso não se resolva rapidamente, ela tem tudo para atrasar uma União Europeia que tem muito que correr para apanhar o comboio internacional. Mesmo com o apoio do aliado americano.