Assinalámos a nove maio de dois mil e quinze os setenta anos do fim da segunda guerra mundial e, na sequência desse momento histórico, o dia da Europa com todo o seu significado de paz e prosperidade para esta parte do mundo.

Entre nós, assinalaram-se, também, a um de janeiro passado, os trinte anos da nossa adesão às então Comunidades Europeias, hoje União Europeia.

São datas importantes, mas são, sobretudo, momentos de reflexão sobre o tempo em que vivemos.

Momentos de reflexão cuja atualidade se acentua face à dificuldade em sair da crise em torno das dívidas soberanas ou do premente socorro aos refugiados. E, ainda, pelo retorno aos populismos de tão má memória, cuja principal consequência não é o fim da democracia, mas porventura o fim da liberdade.

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Veja-se o que se passa, por exemplo, com o renascimento dos movimentos sociais, os novos partidos, como o Podemos em Espanha. Mas, como se viu nas últimas eleições no país vizinho, este não traz uma nova ideologia, nem um novo programa, apenas promessas. Com ele surge apenas uma nova narrativa pretensamente redentora e utópica e um apelo às velhas emoções de sempre: a inveja e o ressentimento social contra os poderosos, os de cima, os ricos, a casta. No final, infelizmente, mais do mesmo: uma nova casta.

Diz Pablo Iglésias, líder do Podemos: “o que interessa é ganhar (…) a obrigação de um revolucionário é sempre, sempre, sempre, ganhar”. Ora, isto é pura conquista do poder. (Filipe Gonzalez, na passada semana, em entrevista ao El País, chamou o Podemos de “puro leninismo 3.0”!) Isto é dizer que os fins justificam os todos os meios.

Estamos de regresso à democracia radical, de convenção, de assembleia, totalitária, tal como no período do terror de Robespierre (que Iglésias evoca, aliás, a abrir o seu último livro Disputar a Democracia), em pleno final da revolução francesa que tanto inspirou regimes sanguinários de todo o mundo.

Ou seja, o que parece alimentar estes novos movimentos, como também o Syriza na Grécia, o Movimento Cinco Estrelas em Itália, a Frente Popular em França ou, ironicamente, o Partido da Liberdade na Hungria, é o clássico populismo, tanto de direita, como de esquerda, tal qual nos anos trinta do século passado surgiram por toda a Europa, na sequência da crise financeira de 1929: em suma, o regresso da democracia radical, cujo fim será a demagogia.

Basicamente, o seu papel resume-se a denegrir as instituições, em nome de mais democracia, outra democracia, outra globalização, mais nação menos Europa. Sempre, porém, com menos liberdade em nome de tudo isso.

É certo que as sociedades democráticas contemporâneas, pela sua complexidade, são hoje estilhaçadas por vários centros de poder e lutas correspondentes que vão desde o âmbito cultural às próprias esferas políticas e económicas. Como mediar estes poderes de modo a garantir a viabilidade da democracia? Como continuar a garantir um modelo de democracia que respeite os valores do iluminismo moderado: alternância pacífica de governos, estado de direito, direitos fundamentais, economia de mercado com forte regulação e apoio social aos mais carenciados?

É certo, também, que a democracia liberal necessita de bem-estar, estabilidade social, crescimento económico contínuo. Ora, na Europa de hoje, tudo isso parece estar em causa. Os factos parecem ter mudado. E os valores?

Associada à referida fragmentação do poder (o fim do poder de que fala Moisés Naim), surge a corrosão da autoridade moral e da aceitação desse mesmo poder e dos seus protagonistas. Assiste-se, ainda, em consequência, ao progressivo declínio da confiança nas instituições europeias e nacionais.

Só que o poder, sem a devida forma, sem a legitimidade das instituições, sem a confiança e o respeito daqueles sobre quem é exercido, o poder sem princípios e valores, é um poder nu, é a força pura, a antecâmera de todas as ditaduras e de todos os totalitarismos: o fim da liberdade e da dignidade humana.

Por um lado, vive-se um egoísmo exacerbado pelo consumo, pelo efémero. Hoje em dia, não perguntamos o que podemos fazer pelo nosso país, mas o que o nosso país pode fazer por nós! Quem quererá, na Europa, voltar a combater pela pátria?

Por outro lado, a excessiva concentração do poder económico-financeiro, num reduzido número de mãos, tem vindo a relegar para um plano subalterno o poder de decisão e de intervenção da política e dos políticos, esvaziando ambos da força clarificadora e mobilizadora do combate de ideias e minimizando a importância que o voto popular tem como fonte de legitimação.

Para muitos, torna-se necessário superar a democracia, substituindo-a por outro modelo de governação baseado nos resultados: o mercado, a técnica, os novos sábios.

Para alguns, só lá vamos com menos liberdade e mais autoridade, criando os clássicos inimigos: os imigrantes, os estrangeiros, a comunicação social livre e plural, enfim, um retorno ao autoritarismo nacionalista.

Acontece que, ainda assim, apesar de todos os fracassos, de todas as eventuais desilusões, nos últimos anos, na Europa, garantimos a paz, salvaguardámos a liberdade, melhorámos a solidariedade e qualidade de vida dos cidadãos.

É que as instituições que temos na Europa, não sendo perfeitas, demoraram muito a construir, deram muito trabalho a solidificar. O caminho não pode ser destrui-las em nome de um qualquer mundo novo, de um homem novo ou de um mundo sem europeus. Esta é a Europa de Vitor Hugo, de Churchill, mas também de Schuman, Monnet, Adenaeur, Spaak ou Gasperi, Esta é a Europa que não se fez de um só golpe… mas de realizações concretas: é uma construção sempre inacabada de paz, liberdade e bem-estar social.

Continuar a lutar, em conjunto, por esses valores, será o grande desafio. Afinal, não se pode pedir aos homens que construam o melhor dos mundos, mas sim um mundo um pouco melhor do que aquele que encontraram. Um mundo melhor, com democracia, mas sobretudo com a garantia da liberdade. Esta é também a história do movimento europeu que deverá continuar a passar pelo aperfeiçoamento, pela reforma, pela transformação gradual das instituições europeias. Tradição e modernidade, diversidade e identidade, qual Europa de valores e princípios num mundo globalizado, onde os europeus continuem a fazer a diferença.

E se a Europa é, sobretudo, liberdade, permitam-me uma palavra para a atribuição, pelo Presidente da República, da Grã Cruz da Ordem da Liberdade ao engenheiro António Guterres.

Trata-se de uma condecoração justíssima e oportuna para quem fez da sua vida uma luta constante pelos valores europeus, pela liberdade e igualdade de oportunidades em Portugal e no mundo. Bem-haja, pois, por esta homenagem que o tempo só ajudará a reforçar.

Professor universitário, secretário de Estado em três governos do PS