Há muito tempo que a França deseja unir a Europa sob os seus auspícios. Há décadas que a França quer abranger a força económica da Alemanha e usá-la para, por via da UE, a projectar no mundo com o carimbo francês. Sucede que a invasão da Ucrânia pela Rússia teve uma consequência que não parecia possível nos tempos mais próximos: o rearmamento alemão.

A inutilidade da Alemanha projectar força militar deveu-se em grande parte à garantia de defesa norte-americana. A decisão de Putin invadir a Ucrânia deveu-se à percepção, da parte de Moscovo, da menor vontade dos EUA se envolverem na defesa europeia. Esse enfraquecimento deriva dos problemas internos norte-americanos (dívida pública elevada) mas também do peso que a China detém nas relações internacionais. Se a percepção desse distanciamento norte-americano convenceu Putin da oportunidade de invadir a Ucrânia, a opção de Putin persuadiu Berlim da imprescindibilidade de investir na sua defesa.

A decisão da Alemanha está a ser bem recebida no Ocidente, mas terá repercussões no futuro da Europa. Naturalmente não se receia que a Alemanha regresse aos ímpetos expansionistas do passado. O ponto a reter é que uma Alemanha militarizada não aceitará que a política externa europeia seja ditada pela França. Dito de outra forma, a UE mostrou-se unida perante a ameaça russa, mas essa unidade vai ser diferente daquela que conhecemos.

A 14 Setembro de 1958, Konrad Adenauer foi recebido na casa de Charles de Gaulle em Colombey, onde pernoitou. O chanceler alemão foi o único governante estrangeiro a quem foi concedida semelhante honra. Recém-chegado à presidência da França, de Gaulle exerceu todo o seu charme para conquistar Adenauer contra os ingleses e norte-americanos. Três dias mais tarde o chefe de estado francês enviou a Eisenhower e a Macmillan um memorando sobre a Aliança Atlântica. Neste, de Gaulle referia que a acção da NATO tinha um alcance limitado pois, tanto a França como EUA e o Reino Unido eram potências com presença e força que iam além do Atlântico. Para colmatar essa falha sugeria uma aliança tripartida a nível mundial, o que significaria reduzir o papel da NATO. Não é difícil de imaginar o quanto desiludido ficou Adenauer logo que soube deste documento. Não só a conversa com de Gaulle fora noutro sentido como o seu anfitrião jamais lhe referira a existência da tal proposta. Chanceler de uma parte da Alemanha, Adenauer tinha perfeita consciência que só com um compromisso claro da parte dos norte-americanos contra a ameaça soviética seria possível evitar o rearmamento alemão.

Este episódio está bem retratado na biografia de Charles de Gaulle (‘A Certain Idea of France’) do historiador britânico Julian Jackson. Trago aqui este caso pois retrata bem a duplicidade francesa e o dilema alemão. À época a defesa e a política externa da Alemanha dependiam de terceiros, realidade que pode terminar em breve. O episódio demonstra também que o projecto europeu não assentou em unanimismos entre governantes que sabiam bem o que queriam. Os líderes políticos de então não o sabiam como hoje também não sabem.

Em meados dos anos 60 de Gaulle dava-se ao luxo de considerar possível uma unificação da Alemanha desde que o arsenal nuclear da França e da URSS garantissem que Berlim continuasse militarmente inofensiva. Em 2022 Macron pode estar satisfeito com a perspectiva de uma UE mais integrada e mais coesa, principalmente com a saída do Reino Unido. Mas tal como de Gaulle não controlou a desilusão de Adenauer, os franceses hoje também não controlam os efeitos do rearmamento alemão no equilíbrio da União. Dentro de alguns anos a Alemanha terá um poderio militar próximo ou equivalente ao francês. Isso, acrescido da força económica alemã, da sua produtividade e das suas melhores contas públicas pode virar contra os Franceses o feitiço de unidade que Macron acena os Europeus. Por ora quando Volodymyr Zelensky exortou Olaf Scholz para ‘que dê à Alemanha o papel de liderança que vocês na Alemanha merecem’, os deputados alemães aplaudiram-no de pé. Daqui a uns anos Paris lamentará o afastamento de Londres tal como de Gaulle lamentou que Adenauer tivesse tido conhecimento do seu jogo duplo.

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