“Chegará o dia em que não haverá mais campos de batalha, mas mercados abertos a comércio e mentes abertas a ideias.”
Victor Hugo

A ordem internacional apoiada pelos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial ofereceu ao mundo ocidental e aos países emergentes que aceitaram as regras do comércio livre a oportunidade de se transformarem economicamente e socialmente. Apesar das crises económicas pontuais, os últimos setenta anos foram marcados pelo desenvolvimento de classes médias em vários países em desenvolvimento, pela redução global da pobreza e pela diminuição da desigualdade [Segundo Lakner e Milanovic em 2016 o índice de Gini mundial desceu de 0,68 para 0,61 desde 1985 – o valor 1 corresponde à desigualdade absoluta em que apenas um indivíduo tem todo o rendimento e 0 corresponde à igualdade absoluta.].

A evolução não foi constante e infelizmente não chegou a todos, mas a vida de muitas pessoas melhorou nas últimas décadas face à dos seus pais e avós, e isso deve-se em grande parte a uma ordem internacional que favoreceu o comércio livre entre países. Mas tudo isto pode estar prestes a mudar, porque os Estados Unidos começaram a inverter caminho. Neste contexto, a União Europeia tem de avançar para garantir que os sucessos das últimas décadas não são desperdiçados.

Em 2016, parecia que apesar da postura pouco convencional do Presidente americano e da sua peculiar técnica de comunicação, a sua política económica internacional, sendo menos aberta do que anteriormente, seria ainda assim compatível com o livre comércio e respeitadora das relações de interdependência económica entre os diferentes países e regiões. Essa ilusão tem vindo a ser gradualmente, mas seguramente desmentida. Depois de ter retirado os Estados Unidos de parcerias e acordos comerciais existentes ou em fase de negociação, a administração americana lançou uma campanha pela efetiva destruição do comércio internacional e das suas instituições.

A face mais visível dessa campanha é o aumento de tarifas sobre o aço e alumínio, alienando vários parceiros comerciais, mas também uma parte importante do tecido industrial americano que depende de importações relativamente baratas. Foi na sequência deste anúncio que Presidente do National Economic Council, Gary Cohn, se demitiu. Cohn era o conselheiro económico do Presidente mais favorável ao comércio internacional e a sua ausência pode significar uma política mais protecionista nos próximos meses. A ameaça recorrente que os Estados Unidos podem vir a aumentar as tarifas sobre carros importados para 35% poderá estar agora mais perto de ser concretizada, com potenciais efeitos devastadores para a indústria europeia.

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A face mais subtil mas mais profunda é a resistência à nomeação de juízes para o Órgão de Apelos da Organização Mundial do Comércio. Estabelecido em 1995 este Órgão pertence ao sistema de resolução de disputas da OMC e os Estados Unidos têm bloqueado a substituição de três juízes que saíram recentemente. Com a próxima saída em 2019, o número de juízes passa para três, o limiar mínimo de funcionamento. Mais de uma retração das relações internacionais, este bloqueio mostra que a estratégia dos Estados Unidos tem passado por desafiar as regras internacionais que têm servido de base ao desenvolvimento do comércio internacional.

A atitude da administração americana deixa a União Europeia numa posição pouco invejável: a de ter de responder aos Estados Unidos na mesma moeda aumentando as suas tarifas, segundo a Comissária Malström, dentro das regras de proporcionalidade da OMC.

No entanto uma guerra comercial pode representar o fim da recuperação cíclica mundial que estamos a viver e pode lançar as bases de uma desaceleração do potencial de crescimento global. A resposta da Europa tem por isso de ser mais abrangente. Em primeiro lugar é fundamental que a UE assuma plenamente e ativamente a sua responsabilidade de defender as instituições que regulam o comércio internacional.

Em segundo lugar, a Europa deve continuar a promover acordos de comércio que lhe permitam aumentar a sua esfera de influência. Um bom exemplo disso é o acordo com o Canadá e o projeto de iniciar negociações com a Nova Zelândia e a Austrália. Ao mesmo tempo a União deve aproveitar melhor a possibilidade que é dada pelo Tratado de Lisboa de aprofundar a coordenação no âmbito do Investimento Direto Estrangeiro. Até agora esse instrumento foi praticamente ignorado, mas pode ser usado para aumentar a influência, em particular nos países em desenvolvimento.

Finalmente, a aparente ausência do Reino Unido neste debate é preocupante. O Reino Unido não pode, contrariamente ao que pensa, fazer face sozinho aos desafios que se avizinham no comércio internacional. Quanto à UE, não deve ignorar a importância do Reino Unido como parceiro na defesa dos valores da ordem internacional, sejam eles de natureza económica ou política. A notícia de que a UE e o Reino Unido chegaram a um acordo para a fase de transição do Brexit é, neste contexto também, muito positiva.

A reflexão sobe a reforma da UE não pode passar ao lado deste desafio do comércio internacional. Numa ordem internacional em que a liderança económica está mudar do Oeste para Leste, a Europa tem de aprofundar laços novos e antigos que lhe permitam continuar a defender os nossos valores.