Em 1998, o jornal neerlandês NRC Handelsblad recrutou o historiador Geert Mak para viajar pela Europa e escrever sobre os efeitos do século XX nas suas cidades. O trabalho foi um êxito local e os textos acabaram por ser reunidos num livro nunca por cá editado, com o título “I Europe: Travels Through the Twentieth Century”, que rapidamente se tornou parte do cânone do sentimento europeísta.

A Europa que Mak encontrou era ainda uma tentativa de ligar os pontos de um período brutal, onde a memória ocupava um espaço colossal e incómodo. Esses europeus já não se lembravam das vitórias que aquietaram os primeiros anos de 1900 e faziam o melhor para esquecer e construir por cima das tragédias que se seguiram.

Naquele momento, a identidade era um fardo; as melhores histórias da viagem são as que nos mostram como a desilusão com as promessas do passado inclinou os países para a melancolia de uma prosperidade sem rumo – ao visitar Portugal, por exemplo, Mak narra as intenções da revolução que entretanto se revelaram tragicamente equivocadas e repara que “em lado algum da Europa encontrei o Terceiro Mundo tão naturalmente presente como aqui”.

Nas grandes capitais, o contraste do passado com o presente (sendo que hoje ambos se leem como parte do passado) é fonte de espanto. Em Viena, outrora a mais europeia das capitais, pouco mais se passa além de uma forma de aborrecimento que agora se diria estrutural, num arrastar impessoal e económico de vidas, que contrasta com o ambiente dos cafés onde anos antes tinha nascido a ideia de Europa. O espectro dessas crónicas, sempre presente mas raramente mencionado, é a União Europeia.

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Mak é demasiado liberal para a criticar no que importa e – como qualquer adolescente que num interrail é poupado a dificuldades fronteiriças – aponta-lhe sobretudo as vantagens do progresso, mas é impossível ler esses relatos em 2020, encontrando as raízes dos problemas de hoje, e não pensar em culpados.

A perda de propósito foi sempre uma ameaça séria à Europa e todas as tentativas de resposta parecem conduzir a um beco sem saída. Dizer que a União representa a “prosperidade” é condená-la em tempos de crise económica e defender que se trata de uma “comunidade de valores” (quais?) lembra-nos a atração pelo abismo em quase todos os Estados-membros. Não chega e não funciona.

A União de hoje já não é pela globalização, pelos mercados ou sequer pela prosperidade. A ser alguma coisa, a União é agora por si, paranoica com a sobrevivência e errada ao achar que ela se encontra nos seus gabinetes climatizados.

Escrever nesta altura sobre perda europeia implica falar do Brexit. Resolvidas as negociações para o abandono pleno e “duro” do Reino Unido, a União Europeia perde mais do que um grande Estado.

Numa das passagens mais inspiradas do livro, Berlim é descrita como uma capital que nasceu tarde e tentou compensar o tempo perdido ao tornar-se numa mistura arquitetónica da História vizinha a que aspirava. Essa imagem serve a ideia romântica da Europa como conjunto de partes, que unidas formam algo maior do que a sua soma.

A realidade não foi por aí, com a fração europeia de Bruxelas a tornar-se num enxerto burocrático num país pacato, uma realidade paralela de alguns arruamentos. A pergunta fundamental da Europa volta a aparecer: é na entropia de Berlim ou no kitsch de Bruxelas que se resolve a questão da identidade?

O Reino Unido respondeu há quatro anos, destruindo a ideia de inviolabilidade da União. A perda de um Estado-membro, no meio de uma perda de propósito, trouxe os piores instintos do atual estado europeu, que se fechou sobre si para tentar enfrentar o mundo.

Os britânicos decidiram que a preservação da identidade é incompatível com a União Europeia. O tempo que passou desde o referendo deu-lhes razão. Uma União cada vez mais centralizada e homogénea agrada a políticos e comentadores, mas deixa os europeus com pouco. Numa altura em que tanto da política é a luta por um propósito, a União continua incapaz de permitir que uma resposta surja pela força que a afaste do centro. A partir de amanhã perdemos também quem nos tentou avisar.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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