1 Por muitos anos que tenhamos de jornalismo, há notícias que lemos que são autênticos murros no estômago. Um bom exemplo disso mesmo é esta peça publicada há 10 dias aqui no Observador: “Holanda debate comprimido letal gratuito para maiores de 70 anos “cansados de viver”. A hipótese, que está em debate no país que legalizou a eutanásia e o suicídio assistido em 2002, de qualquer pessoa com mais de 70 anos puder deslocar-se à farmácia mais próxima e comprar um medicamento letal sem qualquer necessidade subscrição médica é algo mais do que a banalização da morte assistida — como eufemisticamente a eutanásia é tratada.

É a banalização, a facilitação e a promoção do suicídio de uma forma tão fútil que a morte por escolha individual passa a ser vista como uma opção simples e natural face às simples agruras que todos cidadãos têm na sua vida. E é a destruição dos alicerces de uma sociedade humana, tolerante e desenvolvida em que a defesa do progresso económico e social anda de mãos dadas com o conhecimento cientifico para que a esperança de vida seja uma verdadeira conquista civilizacional.

Por muita compreensão que possa ter (e tenho) sobre alguns pontos do projetos de lei de despenalização da eutanásia e do suicídio assistido que vão ser discutidos no Parlamento na próxima 5.ª feira, também tenho a convicção de que esse é um avanço muito perigoso que pode mudar a forma como a sociedade portuguesa, assente no princípio cristão, constitucional e penal da defesa da vida, sempre se organizou.

A construção de uma comunidade comunidade amoral e fútil no que à vida diz respeito é um perigo real. É bom que tenhamos consciência disso.

2 Dir-me-ão que não é isso que vai ser discutido esta quinta-feira na Assembleia da República. É verdade. Os cinco projetos de lei (PS, Bloco de Esquerda, PAN, Os Verdes e Iniciativa Liberal) pretendem despenalizar a eutanásia para grupos de cidadãos que tenham doenças incuráveis e fatais e que se encontrem “em sofrimento duradouro e insuportável”. Tudo após a autorização de uma comissão médica independente que avaliará o pedido da utentes.

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Contudo, existe logo um problema a montante: o PS nunca apresentou as suas ideias sobre a eutanásia aos eleitores durante a campanha das legislativas de 2019. E apesar de Rui Rio ter uma posição conhecida favorável à eutanásia, também o PSD não informou os seus cidadãos de que iria dar liberdade de voto aos seus deputados para aprovarem a eutanásia e o suicídio assistido.

Esta omissão dos socialistas e dos social-democratas, sem os quais nada poderá ser aprovado no Parlamento, é grave — e representa mais um ‘tiro no pé’ dos dois maiores partidos portugueses. Porquê? Porque a democracia representativa assenta na ideia de que os cidadãos transmitem um mandato aos seus representantes — mandato esse assente nos manifestos eleitorais que são apresentados durante as campanhas. Logo, esconder propostas dos eleitores afeta diretamente a legitimidade política para aprovar as mesmas. E é um comportamente típico dos oportunistas.

É devido a este princípio básico da democracia representativa (que não é um sistema propriamente complexo) que os deputados do PS e do PSD deveriam ser sensíveis à ideia do referendo. Não só por uma questão de dar uma legitimidade política à prova de bala a uma mudança estruturante e civilizacional como é a opção pela eutanásia mas também para ser feito um debate longo e exaustivo sobre a matéria. Em Portugal, depois de uma tentativa falhada em 2018, os partidos voltam à carga.

Numa altura em que o país constata, uma vez mais, que está a ser ultrapassado pelos países do Leste europeu em termos de crescimento e competitividade económica, não se percebe a pressa dos partidos políticos (nem a insistência) em aprovar a eutanásia e o suicídio assistido.

3 Além da questão da falta de legitimidade política, os projetos de lei apresentados são propositadamente vagos e suscitam dúvidas que só deverão ser esclarecidas com a regulamentação da lei. PS, Bloco de Esquerda, PAN, Os Verdes e Iniciativa Liberal têm praticamente a mesma ideia: permitir a morte ou o suicídio assistido em casos de “doença incurável e fatal” que acarrete “sofrimento duradouro e insuportável”, sendo que os pedidos dos cidadãos interessados serão sempre avaliados por médicos e por uma comissão composta por pessoas de reconhecido mérito.

As perguntas/dúvidas que estes conceitos vagos suscitam são óbvias: em que momento da “doença incurável e fatal” a eutanásia pode ser aplicada? Quando é feito o diagnóstico? Só a partir de determinado prazo? O que é “um sofrimento duradouro e insuportável”? E se o sofrimento for essencialmente psicológico? E o que é uma “lesão definitiva”? Cegueira, surdez ou amputação têm a mesma importância do que uma doença degenerativa? E todas as doenças degenerativas, nomeadamente que acarretem perda de conhecimento, podem ser elegíveis?

Estas e muitas outras perguntas suscitadas pela leitura dos projetos lei apresentados no Parlamento dizem bem da grande sensibilidade e importância deste tema mas também sustentam as muitas dúvidas que muitos cidadãos (como eu) têm sobre a questão da eutanásia e do suicídio assistido.

É óbvio que nenhum ser humano, cristão, judeu, muçulmano, ateu ou agnóstico, quer ver o outro a sofrer nos últimos momentos da sua vida. Mas a aprovação da eutanásia e do suicídio assistido pode ir muito além dessa ideia e transformar-se em algo que é a antítese de tais princípios humanistas.

4 Regressemos à Holanda. Noa tinha 17 anos quando decidiu morrer em junho de 2019. Vítima de várias violações entre os 11 e os 14 anos, a jovem sofria de stress pós-traumático, depressão e anorexia. Antes de morrer, tinha feito um pedido de eutanásia clínica mas a comissão médica que tinha de aprovar a questão informou-a que teria de esperar até aos 21 anos — altura em que o seu cérebro estaria totalmente desenvolvido — para fazer um novo pedido.

O caso de Noa é, como muitos outros, complexo. É impossível não ter em conta o sofrimento desta jovem holandesa mas também não podemos ser insensíveis a uma nova cultura que a legalização da eutanásia acaba inevitavelmente por criar. Banalizar a morte, promover a ideia de que a morte pode ser a melhor solução para a resolução dos problemas que a vida cria a todos os seres humanos é também passar uma mensagem de facilitismo que de humana não tem nada.

E é aqui que entra o conceito das chamadas ‘rampas deslizantes’ — um perigo que vem sempre ao de cima quando falamos de eutanásia e de suicídio assistido. Helena Garrido já recordou esta segunda-feira no Observador, como a médida Isabel Garliça Neto já o tinha feito em 2018 , os alertas de Theo Boer.

Trata-se de um professor de Ética que fez parte das comissões holandesas que aprovavam os pedidos de eutanásia e que decidiu sair devido à banalização da morte medicamente assistida — só em 2018, a Holanda aprovou mais de 20 eutanásias por dia. E o que nos diz o professor Boer? Várias questões relevantes para um país, como Portugal, que está a pensar em aprovar uma lei semelhante:

  • Que a eutanásia e o suicídio deixou de ser aprovado como uma exceção para passar a ser cada vez mais uma regra;
  • Que as aprovações das comissões médicas holandesas vão muito além dos casos de sofrimento duradouro e insuportável;
  • Que há uma subnotificação de casos de doentes não terminais que estão relacionados com demência ou doença mental;
  • E que a aprovação de uma lei em 2002 para a eutanásia e o suicídio para casos muito específicos – que mesmo assim não está a ser cumprida -, abriu a porta para que surja uma lei em que aquelas práticas passam a ser aceites sem restrições para cidadãos idosos — ou seja, com mais de 70 anos, como se debate atualmente.

Resumindo e concluindo: o perigo das ‘rampas deslizantes’ existe mesmo.

5

O tema da eutanásia e do suicídio assistido não deve ser colocado no campo ideológico (esquerda/direita), religioso (católicos/não católicos) ou até geracional (velhos/novos). Existem pessoas a favor ou contra em qualquer um desses campos. Mas tenho de constatar algumas das contradições em que incorrem os progressistas que apoiam a legalização dessa prática.

Porque muitos deles são os mesmos que ignoraram anos a fio os avisos sobre o inverno demográfico em que Portugal está mergulhado (o que coloca em causa a nossa sustentabilidade enquanto país) e que preferem apostar em desespero na imigração para combater esse flagelo em vez de termos uma política global de apoio à natalidade e às famílias.

São também os mesmos que, como consequência de uma total inversão da pirâmide demográfica, se recusam a ver a falência da Segurança Social e a tremenda injustiça inter-geracional que estão a cometer face aos mais novos que estão a pagar as pensões a pagamento. Preferindo, por outro lado, continuar a garantir aos reformados que as suas pensões não serão cortadas — prejudicadando no futuro os filhos e os netos — para ganharem votos desse cada vez mais grupo eleitoral. E chegando até a prometer que baixarão a idade da reforma quando a prioridade, em nome da sustentabilidade e com a ajuda da ciência, deveria ser aumentar tal limite para manter as pessoas ativas.

E são também os mesmos que preferem continuar a ter um Estado monstruoso que tenta ir todas, alimentado de forma insaciável com cada vez mais impostos e contribuições, em vez, por exemplo, de ter um Serviço Nacional de Saúde competente em que os cuidados paliativos seriam uma área de referência.

Muitos dos que querem aprovar no Parlamento a eutanásia e o suicídio assistido são os mesmos que nada fazem para criar condições para o envelhecimento da população portuguesa. Em 2050 seremos o país mais envelhecido da Europa mas muito pouco ou nada está a ser feito para nos prepararmos para esse dia. Será o comprimido fatal para mais de 70 anos a solução para o envelhecimento da população?