De vez em quando, vem a dúvida. Quem se quer tornar especialista no comentário às coisas inconcebíveis que a maioria dos nossos políticos dizem? Eu não, longe disso. Mergulhar à força ou por distracção naquelas cabeças traz consigo uma desconfortável sensação de irrealidade. Como se tivéssemos de conviver diariamente com um mundo alternativo, onde a linguagem é, tirando raros casos, unicamente constituída por chavões e por palavras sem substância, colhidas no ar do tempo, com apenas uma vaguíssima relação às nossas preocupações imediatas ou mais vastas. À primeira vista, nada justifica o sacrifício. Para mais, o mundo à nossa volta está cheio de pessoas que devemos escutar, música que merece ser ouvida, livros que vale a pena ler e muitas coisas assim.

Estes melancólicos pensamentos vieram-me ao espírito por causa de uma frase de António Costa. Podia ser de vária outra gente, e António Costa nem sequer é particularmente interessante. Mas foi ele que nos caíu em cima, como se sabe, e a nossa atenção dirige-se espontaneamente para as palavras de quem nos pastoreia. Falando da sua quase universalmente criticada reacção à catástrofe dos incêndios, eis o que nos disse, justificando o seu comportamento: “Quem é primeiro-ministro deve procurar diferenciar as emoções que sente como pessoa da maneira como as exterioriza. Admito ter errado pela forma como exprimi essas emoções. Gostava muito mais que alguém tivesse dito que eu tinha abusado dessas emoções”.

Quando li, fiquei assombrado. A tirada é toda ela um tratado sobre a substância da política com que temos de viver hoje em dia, se a palavra “substância” convém a uma entidade tão informe e elusiva. Por isso, não se perde nada em ir por partes.

“Quem é primeiro-ministro deve procurar diferenciar as emoções que sente como pessoa da maneira como as exterioriza”. António Costa está certamente a querer-nos lembrar que a sua situação não é exactamente a do cidadão comum. Pura verdade, e os seus propósitos aparentam uma grande plausibilidade. Além disso, o fundo privado das emoções é largamente insondável e seria do pior gosto possível atribuir-lhe malévolas paixões. Há, no entanto, dois comentários que aqui devem ser feitos. O primeiro é que toda a gente, e não apenas os altos magistrados da nação, “deve procurar diferenciar as emoções que sente como pessoa da maneira como as exterioriza”. A não ser assim, como muita gente sábia o notou, não haveria dois amigos no mundo. Rapidamente surgiriam incompatibilidades, graves ou pueris, às quais nenhuma amizade resistiria. E António Costa, que aparentemente tem muitos amigos, que às pinguinhas vai apresentando ao país, ver-se-ia, num abrir e fechar de olhos, uma criatura desolada e inerme.

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Mas admitamos que esta objecção é demasiado teórica. Resta a outra, que é muito prática e factual e que tem a ver com a “exteriorização”. Não foi por uma qualquer reserva, pela exibição de um natural pudor, que ele foi criticado. Não creio, de resto, que ninguém lhe censurasse isso, caso tivesse manifestado essas indisputáveis qualidades, largamente compatíveis com a manifestação de uma efectiva empatia com o sofrimento alheio. A “exteriorização das emoções” foi linguística. Foram as palavras que ele disse que deram o tom. “Minha senhora, não me faça rir a esta hora”, por exemplo. A pura menção de “rir” naquele contexto não é apenas, nem é sobretudo, um desleixo ou uma falta de jeito. Revela uma atitude, uma visão das coisas. Não me refiro, pelas razões que indiquei antes, a quaisquer insondáveis intenções. Refiro-me a uma particular concepção política do mundo, que hierarquiza as prioridades em função da sua proximidade com o interesse próprio, no caso em questão a manutenção da ministra da Administração Interna no governo. É o que “rir”, na sua quase obscenidade, ali significa: desprezo político.

“Admito ter errado pela forma como exprimi essas emoções.” Parecendo a admissão de um erro, é exactamente o seu contrário. Porquê? Porque, para António Costa, é como se tudo se tivesse apenas passado à superfície da superfície. A tal “expressão das emoções” nada teria de político. Fora um erro essencialmente subjectivo. De súbito, a divisão entre o António Costa homem sensível e o António Costa homem político, que justificava a contenção do segundo, desvanece-se e resta apenas o indivíduo António Costa que, como toda a gente, não sabe por vezes exteriorizar convenientemente as emoções que sente. É assim igual a todos nós. Mas, como toda a gente sabe, não é igual a todos nós. Consta que, para o bem e para o mal, é primeiro-ministro. Ele de resto sabe-o, porque até no-lo lembrou na primeira frase.

“Gostava muito mais que alguém tivesse dito que eu tinha abusado dessas emoções”. Aqui chega-se à perfeição. António Costa declara que preferiria que o tivessem acusado de irracionalidade (“abusar das emoções”). Isto é: de não agir segundo os moldes precritos na primeira afirmação (“Quem é primeiro-ministro deve procurar diferenciar as emoções que sente como pessoa da maneira como as exterioriza”). Dito de outra maneira: ter-lhe-ia dado mais jeito que a percepção da sua pessoa tivesse sido diferente daquela que foi. Mas, dada a sua natureza (subjectiva, não política), a percepção redundou errada. Não cometeu um erro político, resultante de razões políticas e da sua concepção da política. Não, foi vítima (sublinho: vítima) de uma demasiado humana inabilidade pessoal que não só merece perdão como até compaixão. Houve ali uma tragédia pessoal que os espectadores devem perceber.

Nada disto, é claro, é minimamente credível. O problema da “expressão das emoções” de António Costa não resulta de qualquer incapacidade subjectiva sua de trazer à luz do dia os seus sentimentos profundos, que pouco vêm aqui para o caso e sinceramente suponho serem os melhores. Não. O problema é, do princípio ao fim, político. Os reflexos políticos de António Costa encontram-se em primeiro lugar determinados por um feroz apetite de auto-preservação, variada e abundantemente demonstrado ao longo dos tempos (Seguro, constituição da geringonça, etc.). É ele, ele, ele. E ele não os consegue sequer dissimular quando a situação os torna grotescamente desadaptados à realidade. Só não o vê quem não quer.