“As ordens cumprem-se, não se discutem” é uma frase que raros militares não ouviram a oficiais, quiçá só oralmente, incluindo a alguns dos signatários da “Carta dos 28”. Espanta que oficiais que passaram 40 anos num exército, uma organização hierárquica que eleva a obediência hierárquica ao cume dos valores, formem um grupo de pressão para bloquear uma ordem legítima. Quantos dos signatários aceitaram debater ou sequer ouvir as associações socioprofissionais, quando comandavam exércitos? Quantos não lhes chamavam “forças de bloqueio”?

Mas agora fazem pressão, e em grupo. Alguns signatários já expressaram a sua opinião nas instituições próprias; porém, repetem e repetem, com o fim explícito de bloquear a reforma que atribui o comando dos exércitos ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA). Quantos dos signatários não mandaram um subordinado calar-se, por já ter exprimido suficientemente a sua opinião sobre um propósito superior?

Sim, agora podem dizer o que querem sem o risco de serem exonerados. Mas as ações morais de valor são as que se tomam e que têm custos; ficar em silêncio quando custa e falar quando não custa, não é uma virtude.

Espanta ainda que a “Carta dos 28” alegue uma “tentativa de imposição de pontos de vista únicos”. Entre os signatários está um almirante que acusou por duas vezes um oficial na reserva de difamação da Armada e dos seus oficiais (processos arquivados); mas esse almirante (mais o atual coordenador da task force do plano de vacinação) foi acusado de difamação por um tribunal superior, e só evitou o julgamento com um acordo com o oficial que difamaram. Terão sido casos únicos na Justiça; mas poucos duvidarão do que se fez (faz?) aos “desalinhados” até já fora de serviço.

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Norbert Elias apresentou o pudor ou vergonha como instrumental na teoria do processo civilizacional que elaborou. Propôs este sociólogo alemão (1939), que o pudor na exibição de armas, na realização de ameaças e no uso da força foi decisivo para interiorizar o respeito entre cidadãos, a dignidade humana, e o progresso civilizacional. Como Gaetano Mosca, mas por outra via, a teoria de Elias nota que a supremacia civil traduz um avanço civilizacional. Há outra dimensão do pudor: a de resistir a mudar de critérios segundo as conveniências.

A exibição de pressões públicas por militares, mesmo reformados, causa ansiedade, como revela o destaque que os media e pessoas nas redes sociais dão à “Carta dos 28”; muitos pensam que os signatários estão no ativo. Parece ter acabado o tradicional pudor, concretizado em conversas sem testemunhas ou memorandos confidenciais, em geral eficazes para negociações sérias de matérias sensíveis. A eficácia das manobras de bastidores deixava para o espaço público só as expressões de pessoal mais moderno, eventualmente instrumentalizado. Como noutras matérias, os ganhos de transparência em menos enviesamento pagam-se em maior confusão entre os cidadãos leigos; e na redução do debate mediático a impressões e chavões.

Sempre que um governo intenta uma reforma dos exércitos, que não passe por aumentar os poderes dos dirigentes ou os recursos, sofre a oposição cerrada dos oficiais. É bom recordar que o Presidente Eanes sinalizou o seu incómodo com o fim do Conselho da Revolução e vetou a Lei de Defesa Nacional (1982); pouco depois, ainda em funções, patrocinou a criação de um partido político, centrado na figura dele. Poucos foram os oficiais que não menosprezaram os políticos, e sobretudo o então ministro da Defesa. Acusavam-nos de querer governamentalizar os exércitos; como se não competisse ao Governo conduzir a política geral do país, incluindo a direção dos exércitos, e como se em democracia não integrassem a administração direta do Estado.

Esse menosprezo repetiu-se em 1991-1995, em 2007-2009, e em 2013-2014. Quantos dos signatários não menosprezaram os políticos nestas reformas, mesmo que só oralmente ou em privado? Com a melodia de fundo do choradinho da falta de recursos, típico das burocracias públicas, as palavras de ordem dos contestatários são sempre as mesmas: a reforma é desnecessária e só vai piorar as coisas; o processo de reforma está errado; os verdadeiros problemas não se resolvem; e os políticos não sabem da matéria. O ataque e a persistência tornam inevitável concluir que raros são os oficiais que não desprezam a supremacia civil.

Lida e relida a “Carta dos 28” é difícil considerá-la bem argumentada, ou encontrar nela pontos concretos e substantivos, para lá da designação “Armada” em vez de “Marinha”. Dizem querer debate, mas ficam-se pelo recorrente lamento e afirmações vagas; nem são claros os destinatários; ao debate trazem os postos, e escassa substância. Alguém consegue ler factos concretos nesta afirmação: “O atual modelo da estrutura superior das Forças Armadas foi concebido e aprovado na década de 1980 e, desde então, foi sendo progressivamente adaptado à evolução das conjunturas e dos cenários em presença”?

Os signatários querem mais (mais?) debate; mas a conduta típica dos oficiais é a propensão para a ação e a agilidade. Parecem só visar atrasar: pode ser que o governo caia ou a legislatura acabe sem a reforma ser adotada; e ainda podem culpar os políticos pelo fracasso. Quantos signatários podem dizer que nunca o fizeram?

Quem fala em “instituição militar” e quem defende (e bem) a hierarquia e a unidade de comando nos exércitos, como pode ser contra o comando dos mesmos pelo CEMGFA, que até aceita no estado de guerra? A guerra não se treina e prepara em paz? Como pode tal contradição ser ignorada pela “Carta dos 28”?

Os contestatários da reforma têm razão nisto: o ministro Cravinho devia ter anunciado a reforma com um policy paper (por exemplo, numa resolução do Conselho de Ministros, ou num despacho) ou, no mínimo, apresentado as propostas de lei no Parlamento com um discurso detalhado a explicá-las. E têm razão ao reconhecerem implicitamente que o ministro Cravinho está a revelar-se uma das poucas exceções à tese do saudoso Miranda Calha, de que “os políticos têm receio de enfrentar os almirantes”.

A falta de pudor da “Carta dos 28” tem um mérito relevante: mostrar ao PSD e ao CDS que a sua visão idealista dos militares polivalentes, e confiáveis para executar e dirigir em silêncio todo o tipo de tarefas, a qual subjaz à sua vontade de rever a Constituição para alargar as competências próprias dos exércitos, impõe graves perigos à democracia. Se com uma só competência constitucional (contra ameaças externas), os oficiais fazem pressão descarada nos media, o que os impede de, com competências constitucionais internas, definirem inimigos internos e fazerem mais pressão interna, usando todos os meios ao seu dispor e causando inquietação pública? Querem também ter cartas abertas, ou outros meios de pressão, de generais a bloquear reformas das polícias e da proteção civil? Ou querem poder dispor dos meios militares para o combate político interno? Freitas do Amaral, Jorge Miranda e Jaime Gama, entre outros, sabiam bem o que faziam, e fizeram bem, em 1982.