Não é verdade que uma família seja um lugar, para sempre, aconchegado. E que as pessoas que a compõem sejam capazes de se desdobrar, amorosamente, por todos nós, de modo a que cada um se sinta “o centro” das atenções. Mas tem ela de ser assim para que mereça ser “a nossa família”? Se não, o que é que se passa, então, connosco e com ela para que, à medida que ficamos mais velhos, se assuma, como se fosse uma fatalidade, que “a família não se escolhe, mas os amigos sim” (como se os amigos se transformassem numa família de substituição que nos protege e nos ama como a família não será capaz de o fazer)?

Recuemos ao “início”. Se as pessoas que nos amam são responsáveis por alguma coisa, são-no, sobretudo, por nos darem a ideia de que somos especiais. E, sem que elas se apercebam, por nos alimentarem a sensação (com a sua ponta de irracionalidade) de, por acção da família, estarmos sempre protegidos. Dos perigos e dos males: de não errarmos; de não sofrermos; de não adoecermos; ou de não morrermos. Aos olhos da nossa família, não seremos, só, singulares. Somos únicos! Mas, sobre todas as coisas, somos especiais! E, por isso, quase invulneráveis. Este lado, um bocadinho irracional, de todos nós, não é bem uma convicção. É uma certeza; sem reticências! Que nos leva a sentir, um ror de vezes, que somos mais bonitos do que aquilo que somos. Ou mais inteligentes que quase todos à nossa volta. (E, a verdade que se diga, leva a que sejamos mais egoístas do que era suposto que fôssemos.)

Somos especiais sempre que imaginarmos que vivemos, por acção da família, protegidos dos perigos que não “escapam” a todas as pessoas. Eu acho que é por isso que, apesar de tantos exemplos de coisas assim-assim que acontecem à nossa volta, acabamos por ser apanhados de surpresa, sempre que nos sentimos sozinhos e frágeis, quando a vida nos “atropela”. Como se, fosse o que fosse que nos sucedesse, nunca imaginássemos que não estivéssemos protegidos de viver dores assim. Ou – mais, ainda – não deixássemos de imaginar que se um dos nossos pais estivesse presente quando algumas dores nos acontecem, por exemplo, nunca permitiria que a vida nos fizesse mal. Ou que nos apanhasse numa emboscada. O que talvez queira dizer, por outras palavras, que – por mais que a nossa família nos traga, depois, desilusões, dores ou decepções – teremos sido, algures, suficientemente amados. E muito protegidos! A ponto de, pela vida fora, nos sentirmos especiais. E credores dessa atenção. Mesmo quando, numa leitura mais realista (e, até, humilde), nem sempre isso seja tão tal e qual como aquilo que acabamos por imaginar.

É claro que há uma diferença entre nos sentirmos, magicamente, “o menino” da sua mãe. Nos arrepiarmos por sermos mais crescidos que as pessoas crescidas, quando estamos às cavalitas do nosso pai. Sermos “o centro das atenções”, sempre que exibimos as nossas “gracinhas”, quando somos pequeninos. Ou sentirmos que as pessoas da família “estão lá”, sempre que vivemos um “aperto” ou uma dor que nos consome. Mas a discrepância entre aquilo que esperamos da família e o que ela nos dá, acentua-se sempre que lhe “apanhamos” os erros e as omissões, quando somos adolescentes. Ou quando sinalizamos as diferenças entre aquilo que esperamos dela e tudo aquilo que uma família não dá (quando nos falha e não nos entende, ou nos deixa sozinhos a costurar as nossas dores). Ou sempre que ela se omite quando era suposto que não deixasse de nos proteger e de nos amar, mal a sua presença se tornasse indispensável, de tão especial, para o nosso bem.

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Mas serão os nossos pais os verdadeiros responsáveis de tudo aquilo que não fomos capazes de fazer? E serão “só” as omissões da nossa família que nos levam a afirmar que“a família não se escolhe, mas os amigos sim”? Admitamos que crescer significa afinar a sensibilidade, ter mais vida e mais mundo, e ver mais longe. Logo, terão tido os nossos pais, por exemplo, desde sempre, os mesmos “defeitos” e terá sido o nosso crescimento e o nosso distanciamento em relação a eles que nos permite vê-los melhor? Ou, apesar dos “defeitos” que tenham, é a forma como eles deixam de nos tomar como “especiais” e se distanciam da nossa educação (e deixam de ser atentos, interventivos e cuidadores) que nos levam de desilusão em desilusão até sentirmos que a família não se escolhe? Será que seremos “todos” tão vítimas, assim, da nossa família? Ou, pelo contrário, será – ela, também – vítima de nós? Vítima do nosso egocentrismo de filhos, que nos leva, por exemplo, de tão especiais, a esperar ter mais direitos do que responsabilidades, a ponto de ser legítimo recebermos da família muito mais do que aquilo que lhe damos, de forma espontânea e cuidadosa? Ou será que os nossos pais envelhecem, e perdem qualidades como pais, ou, com legitimidade, ficam, eles próprios, à espera do mimo, do colo, do amor ou da protecção a que se sentem com direito da nossa parte, depois de tudo aquilo que connosco construíram? Será que eles, pura e simplesmente, se desencontraram do nosso crescimento, ou esperam que sejamos capazes de entender o seu? Será que, depois de os desidealizarmos, eles passaram a ser um reservatório de erros e de enganos ou – de forma incompreensível, certamente – passaram a não ter mão nas nossas “birrinhas de crianças especiais” e se encolhem, vezes demais, quando se trata de nos “educarem”? Será que, de facto perdemos a família ou, pelo contrário, a deitamos a perder? Será que é a família que desiste de nós ou, pelo contrário, somos nós quem desiste da família?

É claro que nada é branco ou preto. E que, também em relação à família, o crédito daquilo que se diz sobre a família, não será nem linear nem terá, sequer, um só sentido. E é claro que há famílias caóticas. E pais desequilibrados. E famílias que são uma inequívoca confusão. Mas tantas famílias tão desorganizadas não serão a regra a ponto de se banalizar, com legitimidade, que a “família não se escolhe”. Não escolhe – é verdade que não – se considerarmos que “caímos” nela. Quase por acidente, digamos assim. Mas, vendo melhor, escolhe sim; o tempo todo! E o que acontece, muitas vezes, é que guardamos para a família os nossos ressentimentos, os assomos de mau-feitio e as cobranças difíceis. E reservamos para os amigos a nossa “versão gourmet”. Como se não houvesse muito a esperar da família. Sobretudo quando a comparamos com aquilo que os amigos nos dão.

Não é verdade que a família não se escolha. Escolhe! Mesmo quando escolhemos não a escolher. Quando desistimos, devagarinho e em silêncio, uns dos outros. E, aí, pecamos todos. Porque nos colocamos como vítimas. Nós, porque entendemos ter mais direito a sermos especiais que as pessoas que nos tornaram especiais. E os nossos pais, quando se colocam como “crianças desamparadas”, e não fazem “voz grossa” para nos trazerem à razão, por mais mais que possam ter errado e errado. Como só as pessoas que arriscam erram. Mesmo que, no meio de tantos erros, nos tenham amado e protegido. E tornado, de certa forma, “o centro” das suas atenções. E especiais.