Fui pela primeira vez à “Festa” há uns bons trinta anos, ainda no Alto da Ajuda, levado por um amigo com tendências de esquerda. Guardo da excursão uma vaga memória dos intermináveis pavilhões dos “países socialistas”, onde se apresentavam as maravilhas da economia planificada e retratos folclóricos ao estilo do SNI. Na época, os “países socialistas” ainda eram muitos. Incluíam os do leste europeu, que deixaram de ser socialistas assim que puderam, e os PALOP, que ainda se não tinham rendido aos benefícios superiores da cleptocracia. Eu e o meu amigo fomos assistir a um concerto.

Voltei à Festa uma segunda vez por causa de outro concerto, dez anos depois. Era então em Loures e choveu torrencialmente na noite em que lá fui. Recordo-me sobretudo de vastidões de lama, a que a minha companhia tentava furtar os sapatos delicados. Os pavilhões dos “países socialistas” tinham-se reduzido substancialmente. Não voltei durante quinze anos. E, quando voltei, foi, confesso, apenas por causa da pessoa com quem fui. Continuava tudo igual. Os pavilhões já não eram de “países socialistas”, eram de “povos em luta” ou coisa que o valha (basicamente, Cuba, a Venezuela e Angola). E havia muita gente da minha idade, um bocado careca, um bocado obesa, a cantar canções dos tempos do PREC enquanto comia bifanas. E também gente com 20 anos a cantar as mesmas canções, o que foi um bocado “weirdo”.

A Festa, no fundo, não passa de uma romaria, que só se distingue das que enchem o verão nortenho por não ter santa padroeira e os artistas serem aprovados pela inteligência lisboeta. Mas os concertos já não têm a importância que tinham noutros tempos, quando não havia festivais a cada esquina do verão. E os churrascos existem por todo o lado: até na praça da Figueira e no Rossio, para benefício dos turistas. Mas confirmo o que todos dizem sobre a “alegria” dos visitantes, além de uma irritante tendência para toda a gente nos tratar com uma familiaridade deslocada, como se nos conhecêssemos. Como se todos fôssemos, lá está, “camaradas”. Não estou a queixar-me, note-se. A Festa do Avante! é para crentes e, se a assistência de estranhos é permitida, isso não obriga os primeiros a abdicar dos seus rituais ou a atender às susceptibilidades dos segundos. Fossem os europeus capazes de exibir a mesma tolerância indiferente pelos imigrantes e estaríamos todos muito melhor.

Não, o meu problema com a Festa é outro. Não há comentador nem artigo de jornal que não refira a “abnegação” dos militantes, os dias de trabalho voluntário para montar e desmontar a tenda, ou a “fraternidade” e a “alegria de viver” de toda a gente. Confesso não entender o entusiasmo. Por trás desse ethos da Festa, extensível aliás a outras actividades da seita, como o 1.º de maio na Alameda ou os congressos do Partido, e que ajuda a explicar a estranha resiliência dos comunistas a décadas de ineficácia; por trás desse ethos estão atitudes arcaicas e tendencialmente perigosas: sentimentos de pertença, o conforto de uma identidade comum e a vertigem do “espírito colectivo”. Não são virtudes que se recomendem aos cidadãos livres de uma república.

O ethos serve, por agora, de conforto aos órfãos da revolução. Mas, havendo oportunidade, nada nos garante que não inspire uma versão pós-moderna dos guardas vermelhos. Ou dos “camicie nere”.

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