Há mais de sessenta anos que dezenas de fadistas contumazes lamentam a desaparição da casa da Mariquinhas. Fizeram-no de muitos modos: recomendaram que se afogasse as dores da mudança em licor de ginja; imaginaram a proprietária numa situação de obesidade; e cantaram a desaparição das pessoas que tinham cantado a desaparição da casa. A alteração mais ínfima fez-lhes sempre lembrar o fim do mundo, e sugeriu-lhes frequentemente que a actividade humana é vã. As voltas do conhecido fado-Midas transformam tudo o que tocam em ocasião de choradeira.

À Mariquinhas original são porém alheios esses modos de lamento. Continua a ser a mais filosófica de todas as versões. A senhora do título é uma Carmen afadigada, “altiva como as rainhas.” É verdade que mora numa rua bizarra, mas apenas porque era preciso encontrar uma rima para “guitarra.” No demais tem uma casa “muito mal mobilada”, onde se podem ver jarras sobre colunas e “quadros de gosto magano.” Nada que não se possa encontrar ainda em residências de secretários de estado, de professores universitários, e de vendedores ambulantes. O primeiro e o maior fadista que cantou a casa da Mariquinhas construiu com as suas mãos uma réplica da referida casa, hoje no Museu do Fado; parece-se mais com uma casa de bonecas vitoriana do que com o símbolo de um mundo desaparecido.

Na casa da Mariquinhas original pratica-se a prostituição com uma certa alegria. A heroína “é doida pelas cantigas.” É-nos informado que “vive com muitas amigas” mas a frase não quer provavelmente dizer isso. A letra consiste numa série de décimas que à primeira vista parecem monótonas. Há versos que dão a impressão de lapsos poéticos deliberados. São todavia os grandes momentos do fado: o dístico “se canta o fado à guitarra / de comovida até chora” contém uma observação profunda sobre a origem dos nossos desgostos, e mesmo da arte. Quanto ao melhor dístico de todos, chega a confortar os ignorantes, porque sugere um erro literário que nem nós próprios cometeríamos: “Limpa as mobílias com óleo / De amêndoa doce e mesquinhas.” Os eruditos arrepiam-se; mas o fadista sublinha-o com acinte e com deleite. O seu instinto era melhor, e era seguro: nunca ninguém voltou a pronunciar ‘falo’, ‘sala’ ou ‘coluna’ como ele.

Para as grandes cenas de lamentação gostamos de imaginar cenários condizentes: os últimos dias de Pompeia, entrevistas de vida de artistas idosos, e, no fado, o quadro do Pintor Consagrado. Ora na casa da Mariquinhas não há cenários desses. O ambiente é de domesticidade calma. As receitas são guardadas no cofre-forte; as vizinhas não sabem o que se passa lá dentro; há problemas com a conta do gás; exerce-se uma profissão; e, claro está, a mobília é limpa com óleo de amêndoas doces. A casa da Mariquinhas representa o triunfo da sociedade civil.

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