Uma das perguntas mais antigas e mais difíceis é: verdade ou coincidência? Não é uma pergunta especialmente filosófica: é uma pergunta que toda a gente faz. Deriva da nossa inclinação para, mesmo quando nada sugere o contrário, imaginarmos que as coisas podem não ser como parecem.

Há mais de setenta anos que um dos melhores fados nos pretende tranquilizar em relação a essa pergunta: “Sei finalmente.” Aquilo que a fadista sabe finalmente é porém apenas “que afirmam, fazem apostas / Que não sou infelizmente aquela de quem tu gostas.” Não é muito. Irá concluir que “eu vi um sim, onde os outros viram não.” Será todavia que os outros viram bem? E eu, terei visto alguma coisa? Estas dúvidas não são fáceis.

Uma solução seria consultar o “meu amor”: “fala-me toda a verdade / Seja qual for.” Não é contudo prático perguntar aos outros qual é a verdade, e não apenas porque há quem minta. Todos os cientistas sabem que não adianta fazer perguntas às rochas, às pedras e às árvores. Tal como a verdade sobre uma árvore não pode ser extraída da árvore, a verdade sobre uma pessoa não pode ser extraída dela, nem que lhe peça “eu de mãos postas.” Ora a característica principal deste fado é mostrar a posição de quem tenta que outra pessoa diga a verdade. É sempre a posição de quem fala com uma árvore.

No refrão a fadista apela aos melhores sentimentos: “Tem compaixão desta dor, tem dó de mim.” É o que estupidamente se espera que um fado faça; mas aquilo que os melhores nunca fazem. As árvores não têm sentimentos; tentar que digam a verdade é um método em que nenhuma fadista pode acreditar. O refrão começa com uma demora suspeita na palavra “tem.” É um momento sardónico inigualável: faz adivinhar que a fadista já sabia, mesmo antes de abrir a boca, que não iria suscitar manifestações de compaixão. Os outros, queixara-se antes alguém, nunca conseguem içar o coração até à boca. Um grande fado nunca depende dos sentimentos de quem canta: depende de se achar que os outros não têm sentimentos.

Essa diferença ácida em relação aos outros mostra-se toda num pormenor da letra; exprime um horror que letras mais eruditas não conseguem tolerar, ocupadas que estão a ser poesia. Trata-se do modo como pedir que alguém nos diga a verdade (“seja qual for”) conduz à concessão a que se é forçado quando se percebe que nunca se irá finalmente saber coisa nenhuma: “diz o que for.” A expressão ‘o que for’ significa duas coisas muito diferentes em português: a verdade; e qualquer coisa. Por este fado, no entanto, nunca ficaremos a saber se o que for é o que se passou, aquilo em que se aposta, ou uma alucinação: se a verdade é verdade, ou se é uma coincidência.

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