Muitas vezes olhamos como excepções à regra manifestações de novos paradigmas, continuando a descrever, a comentar e a procurar explicar como exóticos fenómenos que vemos multiplicarem-se. Que estes fenómenos possam constituir o preâmbulo de novas ordens ideológicas ou de uma nova arrumação das coisas é uma possibilidade que nos desorienta, e que, por isso, tendemos a desconsiderar.

Ideologias de conveniência

Esta forma de reacção ao desconhecido e de negação da realidade, à esquerda como à direita, tende a ser tanto mais radical e irrealista quanto mais os factos vão baralhando, ultrapassando ou destruindo os quadros mentais, ideológicos e analíticos estabelecidos.

Assim, na invasão da Ucrânia pela Rússia, perante o choque entre o nacionalismo securitário russo e o nacionalismo ucraniano (que, contra as expectativas de Putin, resiste e faz prova de vida), assistimos aos esforços dos dois contendores para ocultar o “pecado nacionalista” que os move, recorrendo a velhos paradigmas – Moscovo anunciando uma “manobra militar anti-nazi” e Kiev transformando-se em “baluarte da democracia”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Foi, no entanto, nas eleições presidenciais francesas que melhor se viu o recurso interessado a retóricas desfasadas para explicar realidades que claramente as ultrapassam. Aí, a percepção da mudança ou do facto de podermos estar perante o fim de um mundo e o começo de outro, foi sendo toldada por retóricas úteis, consoladoras e panfletárias, como as que concentraram o mal absoluto num “perigo” e num inimigo diabólico, como que externo ao “povo” – “a extrema-direita”, “a direita radical”, “os fascistas”, “os nazis” – escamoteando novas realidade e problemas e a drástica dissociação de parte do povo em relação aos dirigentes e aos partidos sistémicos.

Xeque-mate

Em França, as análises dominantes tentaram medir com os mesmos instrumentos o desconcertante facto de a soma dos partidos tradicionais – republicanos (ex-gaullistas), socialistas, comunistas – não ter chegado, na primeira volta das presidenciais, aos 10% do voto popular.

Há vinte anos, a eleição já trouxera um destes choques, quando Jean-Marie Le Pen ficou à frente do socialista Lionel Jospin e passou à segunda volta contra Jacques Chirac. Nessa eleição, os mesmos partidos – gaullistas, socialistas e comunistas – somaram mais de 50% dos votos; e foi em nome de uma “frente republicana e antifascista” que, na segunda volta, Jacques Chirac, o gaullista do RPR, conseguiu 82% dos votos contra os 18% de Le Pen.

Agora, na primeira volta, os partidos tradicionais da Quinta República, somados, não chegaram aos 10%. Valérie Pécresse, “republicana”, teve 4,78%; o comunista Fabien Roussel 2,28%, a socialista Anne Hidalgo 1,75%. A soma (8,81%) espelha o declínio das forças políticas tradicionais em França, à direita e à esquerda. Os “populistas” de direita e de esquerda – Marine Le Pen, Éric Zémmour e Jean-Luc Mélenchon – somaram mais de 50% dos votos.

No entanto, perante esta nítida ruptura política, a solução tem sido, não tentar explicá-la, não reflectir sobre a erosão de um centro que continua a proclamar-se imaculado, mas soar alarmes contra a súbita e inexplicável erupção do papão “extremista” e das suas hostes de “deploráveis”.

Para o historiador Marc Lazar os três candidatos à presidência francesa ditos “populistas”, mais do que a personificação do mal, foram expressão da “desconfiança política” generalizada dos cidadãos franceses em relação aos partidos ou às forças institucionais; uma desconfiança que já tinha tido outras expressões, como os Gillets Jaunes.

É um descontentamento transversal a direitas e a esquerdas sitémicas que propõe novos polos de clivagem, como identidade e multiculturalismo, nacionalismo e globalismo, tradição e experimentalismo, “povo comum” e “elites”. Em entrevista ao Nouvel Observateur, o mesmo Marc Lazar dizia que era de “neopopulismo” que se tratava e que o fenómeno, cada vez mais disseminado, tinha vindo para ficar:

“O neopopulismo actual é um fenómeno duradouro, profundo, mundial, e não uma erupção de febre passageira, como foram as experiências populistas do passado. Não tem nada a ver com o poujadismo da Quarta República, o exemplo emblemático em França de populismo, que só durou alguns anos até de Gaulle voltar ao poder”.

Lazar encontrava três grandes razões para o crescimento desse neo-populismo: a “asfixia das democracias liberais representativas”, que por vezes se manifestava como “fadiga democrática”; o desemprego, as desigualdades sociais e a precaridade do mercado de trabalho num mundo globalizado; e as “interrogações culturais e identitárias”.

Em França, defendia ainda Lazar, a diferença entre os “populismos” de direita e de esquerda estava no conceito de “povo” que, para Le Pen e Zémmour era “étnico-cultural” e para Mélenchon era “mais plástico e aberto ao multiculturalismo”.

A fractura

 Aparentemente, a leve hipótese de Marine Le Pen poder vencer no Domingo, 24 de Abril, apavorou, não só as esquerdas, mas muitos e variados porta-vozes da boa-consciência francesa e europeia, que se juntaram para esconjurar o “perigo extremista”, o novo Hitler de saias, a amiga dilecta de Putin, pronta a retirar a França da União Europeia e da NATO.

Mélenchon, que não ficara longe de Le Pen na primeira volta e que tem agora assegurada a liderança do que resta da esquerda em França, dera como indicação de voto não votar em Le Pen (“Il ne faut pas donner une seule voix à Mme Le Pen”), mas sem recomendar o voto em Macron, ao contrário do que fizeram muitos republicanos, de Pécresse a Sarkozy e Villepin.

Mas haveria donos dos votos? E estariam as coisas como sempre tinham estado?

A partir de posições ideológicas, votações ou análises de sociologia eleitoral, podem tomar-se teoricamente dois caminhos: ou dizer que a direita soberanista, popular (ou populista), apostando no factor identitário e na preferência nacional e opondo-se ao globalismo, saiu do seu lugar na dicotomia tradicional da Guerra Fria para se bater contra o Centro e a Esquerda; ou defender que as categorias tradicionais estão ultrapassadas, que os conflitos reais são agora entre identitários (ou nacionalistas) e multiculturalistas (ou globalistas) e que daqui derivará uma total recomposição de tudo – de valores, de ideias, de fidelidades, de alinhamentos políticos e sociais.

A escolha é mais de forma do que de conteúdo, já que a realidade é a mesma: na versão antiga, a direita nacionalista, ou, em linguagem jornalística, “a extrema-direita”, multiplicou-se quase por 10, dos princípios da Quinta República até às eleições de Domingo passado, à custa da extrema-esquerda (os comunistas encolheram 10 vezes), do centro-direita e da direita gaullista; na segunda versão, as ideologias ou os cânones de interpretação das ideias-valor mudaram e o realinhamento deve agora fazer-se por novas coordenadas.

Seja qual for a interpretação, é inegável a mudança da opinião francesa nos últimos vinte anos: os eleitores da direita nacionalista passaram, em percentagem, de cerca de 18% para mais de 41%, ou seja, de pouco mais de cinco milhões para mais de 13 milhões de votos. Isto apesar da avalanche de propaganda que sistematicamente distorceu e diabolizou as suas lideranças e projectos.

A “frente republicana antifascista” de Chirac que, em 2002, reuniu mais de 25 milhões de eleitores e 82% do voto na segunda volta, encolheu significativamente para 19 milhões e 58%, como que indiferente à mobilização das chefias, da opinião dominante e dos grandes media para que se fizesse barreira à candidata do Rassemblement National. Estarão agora os eleitores menos temerosos e menos permeáveis à influência dos media?

Le Pen – e o “fascismo” – sofreram “uma grande derrota”, dizem alguns comentadores, recuperados do susto; mas o facto é que Le Pen teve a maior votação da história das direitas francesas e que a candidata da “extrema-direita” chegou a ameaçar um candidato que, em França, é do “centrão” e que em Portugal seria do centro-direita (ou daquele centro direita indiferenciado, liberal em Economia, indiferente ao resto e permeável à pressão das “novas agendas” e dos “novos direitos Humanos”, como o aborto, que Macron quer urgentemente elevar a direito fundamental europeu).

Os resultados

Comparando os resultados das eleições de Domingo, 24, com os das eleições de 2017, Marine Le Pen ganhou 8 pontos percentuais e três milhões de votos, em cinco anos. Nesse mesmo tempo, Macron perdeu 8 pontos percentuais e dois milhões de votos.  A diferença entre os dois, que em 2017 fora de dez milhões de votos, passou agora para cinco milhões e meio.

Enquanto a votação em Marine Le Pen é maioritariamente uma votação afirmativa, por escolha da candidata e das suas ideias (excluindo a percentagem de eleitores de esquerda, de Mélenchon e de Yannick Jadot, que votaram, não por ela, mas contra Macron), metade da votação em Macron não é por ele mas contra Le Pen – e dos eleitores de Mélenchon, 17% contrariaram o líder e votaram mesmo em Le Pen.

Por idades, os mais novos (com menos de 24 anos) e os mais velhos (com mais de 60) votaram maioritariamente Macron; os de meia-idade (entre os 25 e os 60) votaram quase em igualdade pelos dois candidatos. Sociologicamente, por classes e profissões, os quadros e os reformados votaram maioritariamente Macron; e os empregados por conta de outrem e os operários votaram Le Pen.

Na noite das eleições, Marine Le Pen, com os seus mais de 13 milhões de votos, apressou-se a dizer que o seu resultado e o das ideias que defendia representava, em si e por si, uma “vitória retumbante.” E, logo a seguir, fez a ligação à “terceira volta” das eleições, as legislativas, marcadas para 12 e 19 de Junho.

As legislativas fazem-se em duas voltas e, para passar à segunda, é preciso que o candidato tenha pelo menos 12,5% dos eleitores inscritos, o que, se a abstenção for alta, se torna difícil para os pequenos e médios partidos. Ou seja, no espírito das instituições da Quinta República, a legislação favorece os partidos maioritários – neste caso o Rassemblement National de Le Pen, a France en Marche de Macron e o La France Insoumise de Mélenchon.

No entanto, os candidatos dos partidos mais pequenos da mesma área política podem levantar obstáculos, já que vão roubar votos aos maiores, que poderão ficar desqualificados para a segunda volta.

A França está dividida em três espaços ideológicos: a “Macronia” ou Centrão, que vai do centro-centro ao centro-direita, podendo apanhar os Republicanos, em crise depois do fraquíssimo resultado de Valérie Pécresse; uma esquerda e extrema-esquerda a reconstituir-se à volta da France Insoumise de Mélenchon; e uma direita nacionalista ou soberanista, com o Rassemblement National de Le Pen e a Reconquête de Zémmour.

À esquerda, Mélenchon comanda as negociações, com comunistas e socialistas pulverizados; aparentemente o líder da France Insoumisse quer, não só negociar candidaturas, mas estabelecer um programa comum.

Os Republicanos estão divididos quanto à aliança com Macron mas, na reunião de 26 de Abril, Christian Jacob, presidente do Partido, não se mostrou disponível para apresentar listas conjuntas com a França em Marcha. Sarkozy, que defende essa aliança, está sob censura dos seus correligionários e outros republicanos conservadores poderão inclinar-se para um “bloco nacional” à direita. Mas, também aqui, as coisas não estão fáceis para Le Pen e Zémmour: depois de ter comentado que era “a oitava vez que o nome Le Pen era atingido pela derrota”, Zémmour estendeu a mão a um “bloco nacional”, mas a líder do Rassemblement, embora se tenha mostrado aberta a negociações, não recuou na sua intenção de apresentar deputados nos 577 círculos eleitorais.

Este Bloco Nacional, englobando o Rassemblement, a Reconquête e os eleitores de Dupont-Aignan, pode ter mais de 30% dos votos em 342 circunscrições, mais de 40% em 128 e mais de 50% em 5, e assim transformar-se numa grande força de oposição. Mas tudo vai depender das negociações e da difícil subordinação dos egos dos líderes ao interesse comum.

Mais importante é que situação política em França – e a França costuma ser precursora na inovação político-ideológica – reflecte e determina uma mudança do paradigma na divisão do conflito, na definição Amigo-Inimigo. Divisão que, com a desindustrialização, a inflacção, e a própria identidade da França em risco a médio-prazo, parece centrar-se na confrontação dos soberanistas de todas as origens – direita, centro, esquerdos – e os globalistas, também de todas as orientações; entre a afirmação da independência nacional e da fronteira e a entrega às oligarquias europeístas, bem representadas por Macron – que, quando da celebração da vitória no Champs de Mars, fez soar o hino europeu antes da Marselhesa.

A França, e não só a de Macron, está definitivamente em marcha.