Ao acordar, ele logo amaldiçoa as cápsulas de Nespresso que acabaram. A mão quase treme. Não há como começar a manhã sem estar minimamente dopado, pelo menos de cafeína. Ele tem reunião às 9, não dá tempo de tomar café na rua. Sua respiração já está curta, suas preocupações já são latentes, seus batimentos cardíacos já estão acelerados. Toma um comprimidinho de suplemento de vitaminas para compensar a falta de disposição.

Já ela, começa o dia pingando colírio para tirar o avermelhado dos olhos. Dormiu pouco, para variar. Depois de tomar o comprido para o hipotireoidismo, come seus tenebrosos alimentos funcionais para compensar o estrago de álcool que fez na véspera. Olha-se no espelho, estica o rosto para passar seu creme vitaminado, anti-rugas, anti-sinais, anti-poluição para tentar frear suas rugas de preocupação, seus sinais de cansaço e a poluição dos seus dias. Coloca os sapatos e sai apressada.

Ele chega no trabalho, a reunião é tensa. Dizem que o cliente não vai aceitar o trabalho desse jeito, que o chefe não vai aprovar esse relatório, que o financeiro não vai liberar essa verba. São 11 da manhã e ele já sente o pescoço todo duro, os ombros doloridos e as costas repuxando. Abre a gaveta, pega um relaxante muscular e engole-o com meio copo d’água.

Enquanto isso ela responde os e-mails, faz 3 ligações de trabalho, manda uma mensagem de bom dia para a mãe. Anota na agenda que não pode esquecer de comprar o presente de aniversário da sobrinha. Pega sua garrafa de chá verde e sua cartela de comprimidos de Vitamina D, já que passa o dia todo dentro de um escritório sem sol, toma dois e continua trabalhando.

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Ele almoça com seus colegas, ri de algumas piadas, toma uma cerveja, fala mal do chefe, fala mal do calor, pede dois cafés expressos e a conta. Volta para sua mesa, pega a cartela prateada e destaca dois comprimidos de omeprazol para proteger o estômago e- por via das dúvidas- já deixa um antiácido à mão.

Ela, antes de almoçar, toma um inibidor de apetite fitoterápico que uma amiga jurou ser tão infalível quanto inofensivo. Toma dois copos de água junto com as cápsulas, para encher o estômago de líquido e tentar comer menos. Esquenta sua microscópica marmita de peito de frango, brócolis e batata doce. Quarenta minutos depois se rende a uma barra de chocolate.

Faltam 40 minutos para o deadline do trabalho que ele tem que entregar. É o cliente mais importante do escritório e não pode haver uma mísera falha. Ele percebe que 40 minutos não serão suficientes. Começa a ficar ainda mais tenso, as mãos transpiram e a respiração volta a ficar curta. Recorre secretamente aos ansiolíticos que o médico recomendou e que ele esconde no fundo da gaveta para ninguém ver.

O alarme dela soa às 16hs. É hora de tomar o anticoncepcional sem nenhum atraso para não correr riscos. Ela sempre olha para a cartela e lembra da amiga que teve trombose. Também lembra da sua celulite e das varizes que começam a aparecer e que o médico já disse ser efeito colateral da pílula. Suspira e pensa que qualquer hora dessas repensa o método, já que o marido não toma esse problema como sendo também dele.

Quando ele chega em casa e resolve pedir entrega de Mc Donald’s, lembra-se que esqueceu de tomar o remédio para controle do colesterol naquela manhã. Pensa que aquilo não deve ser uma boa ideia. Resolve ser mais comedido e pedir apenas uma pizza. Abre uma garrafa de vinho, afinal, depois daquele stress todo, ele merece.

Ela coloca o pijama azul claro, diminui a luz da sala e busca na cozinha seus comprimidos de melatonina, que toma para tentar parar de rolar na cama, acordada durante a madrugada. Liga a televisão para assistir Stranger Things, já que isso, definitivamente, não tem nada a ver com qualidade do seu sono.

Ele vai se deitar satisfeito por não ter precisado do remédio para enxaqueca, nem do antialérgico. Sinal de que foi um bom dia. Ela vai se deitar contente por completar um mês sem seus antidepressivos. As coisas estão melhorando.