A minha Avó está trancafiada há dois anos num lar para bem da sua saúde. Pouco viu da família porque o mais importante, lá está!, é a saúde. A minha Avó já tem mais de noventa anos e por isso há a possibilidade de não viver muito mais. E, para bem da sua saúde, fazemos questão de que nos últimos tempos antes de morrer ela viva o mais afastada possível da possibilidade de morrer. Que os nossos velhos morram saudáveis, é um dos nossos valores supremos.

A mãe do meu amigo Rodrigo soube subitamente que tem um cancro já muito evoluído. Para bem da sua saúde, mal chegou o diagnóstico foi internada para um tratamento sem visitas. A família tem o privilégio de ir falando com ela quando o telemóvel está carregado e ligado porque, sendo a saúde o mais importante, a sua exposição exclusiva aos trabalhos continuados dos médicos é fundamental. Que os nossos adultos vivam saudáveis, é um dos nossos valores supremos.

A Alícia, filha de um casal querido para nós que são o Fábio e a Marina, nasceu numa cesariana em que o pai só pôde assistir porque, estando a mãe com corona vírus, felizmente o conseguiu contrair também dias antes do parto. Para bem da saúde de todos, a família foi família naquele momento marcante porque estavam comungados via covid. Estivessem eles em estados virais distintos e o nascimento daquela criança teria de excluir o pai, para bem da saúde dele. Que os nossos nasçam saudáveis, é um dos nossos valores supremos.

Ninguém quer o mal desta gente—a minha Avó, a mãe do Rodrigo, a bebé Alícia. E nisso reside grande parte do problema. Antes quisesse. Porque, ao menos quando queremos o mal de alguém, querendo expôr essa pessoa ao sofrimento, ela tem a possibilidade de assumir algum tipo de responsabilidade em como lidará com ele (ok, excepção para o bebé). É precisamente por querermos impedir que o mal chegue a este povo que o estamos a brutalizar sob o nosso domínio. Qualquer tipo de escravatura se especializa em formas perversas de ternura.

Passo a vida a dizer que andei à rasca aqui há uns tempos. E repito-o porque não sabia que andar à rasca é poder ganhar um raio-x que vê as tripas da nossa obsessão pela saúde. Uma das coisas que descobri é que a cura também é o que acontece quando algumas disposições deixam de estar sob o monopólio da doença (isto faz parte do meu livro “Arame Farpado no Paraíso” que está quase, quase a sair). Nessa medida, a verdadeira saúde não é tanto a ausência de males mas a relação certa com eles. É também por isso que pessoas ultra-saudáveis trazem consigo algo de sinistro (num mundo de Génesis 3, armam-se em cidadãos de Génesis 1 e 2).

Para ser completamente sincero, agradeço a Deus por viver num Século XXI que me livra de doenças como nenhum outro tempo conseguiu. Sou totalmente favorável ao progresso médico que me toca. Mas, ao mesmo tempo, e talvez por querer devotar-me a uma religião única, que neste caso é o cristianismo, sinto que a saúde acima de tudo é uma fé que muito faz para me conquistar o coração. E, volta e meia, dou comigo paganizado, devoto dos cultos saudáveis, em rezas para purgar as doenças e, lá está!, alcançar a glória final de morrer saudável.

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