Nas suas obras Cibercultura (1999) e Inteligência Coletiva (2007) Pierre Levy explica-nos que o universo cognitivo da cibercultura conduz a um tipo de inteligência compartilhado que surge da colaboração de muitos indivíduos na sua diversidade, de uma inteligência distribuída por toda a parte, pois, todo o saber está na humanidade (Levy, 2007, 212). Na verdade, a sociedade compartimentada e interdisciplinar do capitalismo industrial está já limitada no seu potencial porque é uma sociedade aditiva e linear onde prevalecem a ordem e a segurança, mas, também, a desigualdade social e o progresso mal distribuído. Por sua vez, a sociedade compartilhada e transdisciplinar do capitalismo pós-industrial aspira a mais liberdade e criatividade para crescer, mas é, também, mais incerta e insegura e apresenta um risco sistémico mais elevado. A sociedade pós-industrial é a sociedade dos screenagers e da internet móvel em todas as suas variantes técnicas, ou seja, vivemos já numa sociedade complexa e contingente que exige um pensamento mais crítico e transdisciplinar. De acordo com esta evolução, podemos dizer que assistimos a uma verdadeira reprogramação das mentes à medida que nos aproximamos do ciberespaço e da cibercultura.

Em plena sociedade digital, os cibernautas das gerações Y e Z (nascidos de 1980 para cá) são muito mais criativos e transfronteiriços, no sentido disciplinar, porque em boa medida renunciaram ao sentimento de propriedade e posse para adotarem as noções ou categorias de acesso e serviço partilhado e colaborativo. Eles convivem e trabalham muito mais em comunidades virtuais e ambientes simulados do que em comunidades reais e ambientes físicos. Eles pertencem ao universo dos servidores e utilizadores mais do que ao universo dos vendedores e compradores. Eles são pessoas e indivíduos que trabalham, cada vez mais, em regime de trabalho partilhado e financiamento participativo, isto é, estão constantemente conectados e usando a sua criatividade para agregar valor compartilhado aos serviços imateriais e intangíveis que prestam no imenso universo do ciberespaço através de várias plataformas.

A cultura digital e a inteligência coletiva não só reclamam um pensamento mais crítico como nos conduzem em direção a novos códigos de comunicação e linguagem. A interação entre comunidades online e comunidades offline é uma fonte inesgotável de ensinamentos e aprendizagem, por isso, falamos, também, de comunidades cognitivas que aperfeiçoam constantemente os seus modelos de inteligência coletiva. Finalmente, é bom insistir no lado preventivo e terapêutico destas comunidades, pois não podemos esquecer o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam. Nesta fase de transição, não é demais alertar para as perversões que os novos modelos de negócio podem implicar e estar atentos, por isso, aos efeitos não-intencionais e danos colaterais que lhes são inerentes.

Este défice de cultura colaborativa e solidária enraizada na sociedade política em geral precisa de ser rapidamente preenchido, pois é determinante para fundar um sólido movimento social se quisermos consolidar uma ética do bem comum de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas que esteja para lá do mero negócio digital.

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A grande renúncia e a semana de trabalho flexível

É, justamente, nesta linha de pensamento que entronca o debate sobre a semana de trabalho flexível e o teletrabalho, mas, também, o fenómeno emergente da chamada grande renúncia e as novas dimensões do mercado laboral associadas. O capitalismo pós-industrial compreendeu muito cedo esta mutação radical e transmutou-se, ele próprio, em capitalismo cultural e criativo, feito de ambientes simulados e virtuais e onde, pretensamente, a produtividade do trabalho já não se mede por hierarquias, cadeias de comando e regulamentos disciplinares, mas, antes, por inteligência emocional, sentimentos partilhados e contribuições criativas para o trabalho coletivo. De certa forma, é um regresso a uma ética do trabalho comunitário e a uma inteligência colaborativa interpares. O governo dos comuns, tão bem descrito por Elinor Ostrom (1990), tem agora uma segunda vida. Imagine-se, por exemplo, o potencial colaborativo e a inteligência coletiva que habitam as redes empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de inovação social e as redes amigas do ambiente, as redes artísticas e culturais, mas poderia ainda nomear, mais especificamente, a gestão das áreas de paisagem protegida, zonas de intervenção florestal, condomínios de aldeia, regadios coletivos, zonas de pesca costeira, baldios e águas interiores, bancos de solos e alojamento local, bancos do tempo e voluntariado, serviços ambulatórios de proximidade, aldeamentos seniores e instituições de solidariedade social, etc.

Ora, neste regresso a uma filosofia dos bens comuns, ao autogoverno das regras e à utilidade social do respeito, a ponderação da semana de trabalho flexível é uma lufada de ar fresco para a correção da desigualdade e do progresso social, no sentido da coprodução, cogestão e consumos partilhados de bens e serviços da chamada economia colaborativa. É neste contexto que se insere a chamada Grande Renúncia, uma atitude e uma filosofia de vida mais diferenciadas e seletivas em relação ao universo laboral e ao mercado das profissões, mas, também, em relação à participação sociopolítica por parte daqueles que hoje protagonizam maioritariamente a sociedade digital. Falo, em especial, dos nómadas digitais, da sua topoligamia e ubiquidade no que diz respeito às suas opções socioprofissionais e sociofamiliares e estilo de vida. Mas não apenas em relação aos nómadas digitais, pois a sociedade em rede pode proporcionar uma combinação de pluriatividade e plurirrendimento a todos aqueles que possuem várias competências e qualificações.

Com efeito, há hoje muitos fatores que condicionam as escolhas dos nativos digitais e, de uma maneira geral, dos jovens mais qualificados, que podem justificar uma grande renúncia profissional, familiar, social e política, entre os quais se podem alinhar: as baixas remunerações, a sobrecarga de trabalho e as jornadas de trabalho pouco flexíveis, a baixa progressão nas carreiras e expetativas profissionais, o baixo reconhecimento por parte das chefias e lideranças e a baixa autonomia em matéria de decisão pessoal, as poucas oportunidades de treinamento e capacitação profissionais para projetos mais ambiciosos, a falta de benefícios e incentivos ajustados ao desempenho e produtividade profissionais, assim como, a oferta de bens e serviços aos colaboradores para lá do objeto especifico da empresa. Para lá, obviamente, dos inúmeros incentivos académicos e profissionais que são proporcionados pela liberdade de circulação no âmbito da União Europeia e no universo anglo-saxónico.

Na verdade, a semana de trabalho flexível e tudo o que gira à volta das redes e das práticas descentralizadas e distribuídas não só facilitam bastante a emergência de inúmeras plataformas comunitárias made in de âmbito local que têm implícita uma filosofia dos bens comuns como, também, a articulação da pluriatividade entre, por exemplo, o trabalho de voluntariado em bancos do tempo, trabalho independente de prestação de serviços, trabalho dependente a tempo parcial e ainda outras ocupações profissionais nas áreas artísticas e culturais. Infelizmente, estamos ainda longe de uma economia bem articulada entre bens públicos, bens privados e bens comuns que nos poderia proporcionar uma gama muito alargada de possibilidades de composição socioprofissional, sociofamiliar e sociocultural.

Basta dizer que há, ainda, muitos ângulos mortos entre estas três economias. Esta questão dos ângulos mortosserá, de resto, um dos temas mais fortes no debate público dos próximos anos, sobretudo no que diz respeito à natureza da coabitação e política regulatória entre bens públicos (estado), bens privados (mercado) e bens comuns (comunidade). É nesta coabitação virtuosa que entra a formação do quarto setor, o setor do património e da paisagem, da ciência e tecnologia, da arte e cultura, mas, também, da solidariedade social, do combate à pobreza e as desigualdades, a saúde pública e o envelhecimento ativo. É o momento para desindustrializar a misericórdia, a pobreza, a saúde pública e a velhice e para promover a economia da inovação social e do emprego em nome da dignidade da pessoa humana e da ética dos comuns.

Nota Final

Aqui chegados, é preciso que não se confundam dois planos analíticos. Por um lado, há inegáveis progressos colaborativos e inteligência coletiva muito diversificada em ambientes empresariais modificados e simulados, em espaços comuns de criação artística e inovação social, em resultado da organização de comunidades online e plataformas colaborativas. Todos eles desenvolvem aplicações e funcionalidades muito diversas que importa aprofundar e monitorizar.

Por outro lado, é forçoso reconhecer que estes progressos ainda não se traduzem em melhorias substantivas e estruturais de natureza colaborativa na sociedade política em geral. Desde logo, na promoção da literacia digital e na proteção do trabalho independente e do emprego intermitente. Depois, há manifestações hostis no espaço público, em especial no universo mais agressivo das redes sociais, que podem arrastar consigo a tribalização de comportamentos na rede. Finalmente, a formação ordenada do quarto setor, é, numa sociedade que envelhece rapidamente, um autêntico grito de alerta contra a tragédia dos comuns, razão pela qual a grande prioridade para as próximas décadas será o alinhamento entre a semana de trabalho flexível, o acréscimo dos bens comuns colaborativos, o combate contra a desigualdade social e a criação do rendimento básico garantido. Se não houver equidade neste combate e respeito pela causa da dignidade humana., a grande renúncia, sob múltiplos pretextos e formas, poderá pairar sobre o futuro da democracia e das nossas sociedades.