A surpreendente maioria absoluta conseguida pelo PS no início do ano é um feito em larga medida pessoal de António Costa. O líder do PS conseguiu capitalizar a favor do PS a queda do Governo e a convocação de eleições antecipadas para esvaziar e praticamente liquidar eleitoralmente bloquistas e comunistas. Ao mesmo tempo, acenou com a possibilidade de André Ventura chegar ao Governo para levar uma parte do eleitorado ao centro a recear uma vitória do PSD. Como o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa se apressou a vir publicamente sublinhar, esta foi uma vitória pessoal de António Costa, de tal forma que a legitimidade da maioria absoluta do PS fica materialmente vinculada à continuidade de Costa como Primeiro-Ministro.

Foi, assim, um início de ano em cheio para António Costa e para o PS. Sem a necessidade de recorrer à “geringonça” ou a quaisquer outros entendimentos parlamentares, o caminho parecia aberto para uma legislatura estável. Só que os últimos meses contrariam essas expectativas com uma governação marcada por uma sucessão de casos mal resolvidos e um desgaste cada vez mais notório do próprio António Costa. Se algum desgaste seria sempre expectável face ao acumular de anos na difícil função de Primeiro-Ministro (dificilmente o Costa de 2022 teria a mesma energia e paciência do Costa de 2015), a verdade é que a agressividade tem vindo em crescendo. Agressividade essa – tanto no Parlamento como no contacto com os media – que incorpora até alguma truculência na linguagem (a recente referência à IL como “queques que guincham” foi o mais recente exemplo mas está longe de ser caso único) e denota um sentimento de mal-estar do próprio António Costa.

Um mal-estar que não será certamente alheio à cada vez mais complicada situação interna no próprio PS. Além da já prolongada guerra civil latente no PS que tem conduzido a sucessivos episódios de tensão com Pedro Nuno Santos, a postura de Costa começa a suscitar um número crescente de críticas no campo socialista.

Alexandra Leitão, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública entre 2019 e 2022 e actualmente uma das mais destacadas e influentes deputadas do PS assumiu publicamente o seu desconforto com as declarações recentes de António Costa dando conta de um sentimento de “déjà vu relativamente a outras maiorias absolutas, até com repetição de algumas das palavras utilizadas noutras maiorias” e deixando um alerta claro: “Esta maioria absoluta está no início e não quero que seja uma maioria absoluta em declínio.”

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Também o influente Pedro Siza Vieira, Ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital entre 2019 e 2022, foi explícito e assertivo nas críticas dirigidas publicamente a António Costa:

“É uma entrevista de alguém que está completamente instalado, muito confortável na sua posição, híper-confiante, e é aí que alguma coisa dá uma sensação de desconforto a quem lê (…) uma maneira de falar que me sugere aquela expressão grega, húbris (…) Aquela tentação, aquele sentimento de quem que se sentia infalível e que punha em causa os deuses. (…) Sabemos que nas tragédias gregas aqueles que se deixavam cair na húbris acabavam por depois não ter um final muito feliz.”

Ainda na área socialista, Paulo Pedroso, ex-militante do PS e antigo ministro do Trabalho e da Solidariedade, criticou duramente a atribuição de uma prestação excepcional de 240 euros às famílias de menores rendimentos acusando inclusivamente António Costa de populismo:

“Pode-se embrulhar como quisermos mas isto é má política social e tem estado a ser discutida como se fosse irmã da medida anterior que não é. A medida anterior tem uma lógica de ‘helicopter money’, isto é, independentemente de ter sido bem ou mal aplicada, há uma lógica que determina que há uma necessidade súbita (no caso era o aumento dos combustíveis) e que era preciso combater o choque súbito e estimular a procura por essa via (…) esta é uma medida típica do populismo em que o soberano dá uma esmola orçamental não se comprometendo com nada porque os preços não vão descer. Faz lembrar o 14º mês das pensões de Cavaco Silva em período eleitoral. É caso para dizer: o senhor primeiro-ministro deu uma prenda aos pobrezinhos.”

Perante este cenário no final de 2022, com uma crise económica e social em propagação e a cada vez mais notória degradação de muitos serviços públicos, talvez António Costa sinta necessidade de afirmar publicamente que “vão ser quatro anos” precisamente porque os sinais apontam cada vez mais o contrário. Sendo que a exortação “habituem-se a viver com a escolha dos portugueses” deve provavelmente ser entendida simultaneamente como um sinal para fora e como um sinal para dentro do próprio PS. As manifestações públicas de húbris podem ser ao mesmo tempo tentativas de projectar poder e confissões de fraqueza.