A defesa do direito fundamental à proteção da saúde é um tema que se presta facilmente a discussões dogmáticas em torno da política de saúde e a proposta de lei de bases da saúde, recentemente aprovada, ilustra bem esta realidade.

Está em causa um novo diploma legal que tem a natureza de lei de bases, a qual deve definir as grandes orientações para o setor da saúde, estabelecendo as regras fundamentais de organização e funcionamento do sistema em linha com o disposto na Constituição. Tendo em vista a prossecução do interesse público na satisfação das necessidades de saúde dos cidadãos, o que importa, acima de tudo, é que sejam criadas as condições para que o sistema dê resposta cabal a essas necessidades.

Para tal, é imperativo que as regras fundamentais estruturantes do sistema reflitam de forma coerente os valores éticos da promoção do acesso aos cuidados de saúde por todos os cidadãos, da qualidade, da equidade, da transparência e da sustentabilidade do sistema que obriga à otimização da eficiência, a par de outros valores que, numa lógica individual, promovem a dignidade da pessoa humana.

Ora, o texto da proposta de lei de bases da saúde aprovada pelo Governo (“Proposta de Lei”), tanto no seu preâmbulo como nas próprias bases, apresenta como ideia basilar a redução do papel do setor privado no sistema de saúde, configurando-se a gestão privada e social como regimes de exceção. A Proposta de Lei prevê no nº1 da sua Base 21, que a contratualização com entidades do setor privado e social e com profissionais em regime de trabalho independente, para a prestação de cuidados de saúde a beneficiários do SNS, está condicionada “à avaliação da sua necessidade”.

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Desta regra conclui-se, à falta de qualquer outro critério, que o recurso ao setor privado para a prestação de cuidados aos utentes do SNS, só deverá ocorrer quando não seja possível a prestação dos cuidados em causa por unidades com uma gestão pública.

Em contraponto, a atual Lei de Bases da Saúde, que está em vigor desde 1990, prevê na sua Base XII nº3 que “o Ministério da Saúde e as administrações regionais de saúde podem contratar com entidades privadas a prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde sempre que tal se afigure vantajoso, nomeadamente face à consideração do binómio qualidade-custos, e desde que esteja garantido o direito de acesso.”

Comparando os dois textos, constata-se que na lei atual a articulação do SNS com operadores privados é ditada pela ponderação de um conjunto de valores, como a promoção do acesso a cuidados de saúde, a qualidade, equidade, a sustentabilidade e a eficiência. Já a Proposta de Lei pretende configurar a gestão pública como um meio e um fim em si mesmos, o que não se traduz necessariamente em melhores e mais eficientes cuidados de saúde. O texto da Proposta de Lei revela uma opção ideológica, assumida em nome da defesa do direito à proteção da saúde sem, contudo, demonstrar que tal preponderância da gestão pública do sistema traga ganhos em saúde.

Refira-se a este propósito os resultados do sistema de avaliação hospitalar conduzida pela Entidade Reguladora da Saúde, SINAS@Hospitais, que revelam os níveis de excelência dos cuidados assistenciais à população atingidos por unidades geridas pelo setor privado, a par dos ganhos que essas soluções trazem em termos de controlo da despesa pública.

A Proposta de Lei vem também apontar para o fim, ou a excecionalidade da mobilidade de profissionais de saúde entre os sistemas público e privado. Trata-se de uma medida que terá impacto na vida dos profissionais de saúde, coartando a liberdade de que atualmente dispõem na gestão das suas carreiras profissionais. As consequências que poderá ter a imposição da exclusividade aos profissionais de saúde que trabalham no setor público são imprevisíveis, não sendo de excluir a desvinculação por parte de um número significativo de profissionais.

As soluções acima descritas demonstram a abordagem política que se pretende imprimir à lei de bases da saúde, conferindo a um texto legal que se pretende estável e perene uma orientação que resulta da atual conjuntura política. No entanto, não se deve confundir o que é estrutural e deve ser o núcleo fundamental da organização de um setor tão importante da vida em sociedade, como é o caso do setor da saúde, com o que é conjuntural, e corresponde a uma determinada visão política.

Com a Proposta de Lei assume-se que a promoção do direito à saúde depende essencialmente da gestão pública da prestação de cuidados de saúde, prevalecendo a opção ideológica deste Governo sobre a matriz ética que deve presidir à organização do sistema de saúde.

Rita Roque de Pinho é sócia da Sociedade de Advogados pbbr