Há pouco mais de três semanas, a Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra Crianças na Igreja (CI) fez uma apresentação pública rigorosa e cuidada, doseando com equilíbrio os dados que havia recolhido com testemunhos pessoais absolutamente arrepiantes. Terminava, assim, a suposta excepcionalidade Portuguesa. Aqui, ficámos a saber, tal como em muitos países do mundo, as práticas pedófilas no seio da Igreja acontecem de forma reiterada. No entanto, o que passou em seguida mostra que Portugal continua a ser uma excepcionalidade. Diferentemente de muitos outros países, nos quais a descoberta de pedofilia sistémica na estrutura da Igreja Católica deu azo a escândalos nacionais, em Portugal, a reacção foi suave. O que se passou nas últimas três semanas deixou-me verdadeiramente perplexo sobre o quão doente tem de estar uma sociedade para que, aquilo que ouvimos naquela manhã de segunda-feira na Gulbenkian, não tenha conduzido a consequências sérias.

Em primeiro lugar, dever-nos-emos questionar sobre a salubridade da comunicação social portuguesa e a sua (in)capacidade de escrutinar os poderes religiosos. Façamos um paralelismo com a Casa Pia. Em 2002, depois do Expresso trazer à luz o escândalo de pedofilia, houve uma imensidão de reportagens na imprensa escrita e nas televisões sobre a matéria. Nessa altura, foram cometidos muitos excessos e más práticas jornalísticas, é certo. Com todos os seus problemas, é impossível que não nos interroguemos acerca do silêncio de morte da comunicação social no caso da pedofilia na Igreja. Depois do trabalho da comissão independente, a comunicação social tinha um papel fundamental a cumprir: manter o assunto na ordem do dia, realizando reportagens, estudando e trazendo novos dados a público. Seria imprescindível, por exemplo, a realização de uma grande reportagem de investigação acerca dos bastidores da Igreja, sobre quem sabia o quê em cada momento e quem contribuiu para o encobrimento. Quem viu o filme Spotlight perceberá imediatamente daquilo que estou a falar e de como o trabalho jornalístico é fundamental para despoletar consequências, nomeadamente a demissões na hierarquia da Igreja.

Em segundo lugar, depois da reunião em Fátima na semana passada, a Igreja anunciou algo que nos deveria colocar a todos a pensar. Ao contrário das suas congéneres estrangeiras, que assumiram o problema e trataram de indemnizar as vítimas, levando, em muitos casos, à falência de algumas dioceses, a Igreja Portuguesa decidiu alijar todas as suas responsabilidades. Na existência de qualquer crime, o responsável pela potencial indeminização à vítima é, apenas e só, o padre que o cometeu. Não tenhamos dúvidas. Esta postura tem apenas um objectivo e este não é financeiro. O objectivo consiste em sinalizar à sociedade de que, enquanto instituição, a Igreja não tem culpa de nada. A culpa é, apenas e só, dos padres individualmente considerados. Esta tentativa de fugir às responsabilidades é, simplesmente, risível e preocupante. Em muitos casos, os padres apenas conseguiram escapar durante anos a qualquer escrutínio e consequências dos seus actos precisamente pela sua condição de membros da Igreja e pela protecção que granjearam pela hierarquia. Em última análise, esta postura da Igreja é análoga a uma companhia aérea eximir-se de indemnizar as vítimas de um desastre de aviação porque a culpa foi comprovadamente do piloto.

Em terceiro lugar, passadas mais de três semanas da apresentação do relatório, onde está o Ministério Público no meio de tudo isto? Passado todo este tempo, tanto quanto sei, não houve ainda qualquer reacção por parte do Ministério Público nem da Procuradoria-Geral da República. Sendo a pedofilia um crime público, era expectável que a Justiça não tivesse que esperar por qualquer acção da hierarquia da Igreja para tomar as rédeas ao processo e actuar de imediato. Para além disso, a hierarquia Católica mentiu quando afirmou que apenas recebeu informação vaga e imprecisa, que dificultaria a identificação dos abusadores. Daniel Sampaio, membro da CI, esclareceu de forma cabal que a Igreja dispõe de todos os dados. Existirá alguém dentro do Ministério Público que pretende proteger a hierarquia católica directamente ou por interposta pessoa?

Por último, a Igreja anunciou que deixa nas mãos das dioceses a decisão acerca da suspensão de padres, até para, segundo os bispos, não haver um julgamento sumário e sem possibilidades de defesa. Apesar da subsidiariedade ser um belíssimo princípio organizativo, dada a seriedade do que está em causa, não faria mais sentido, especialmente num país pequeno como Portugal, que os órgãos centrais da Igreja rapidamente tomassem medidas para evitar, acima de tudo, a possibilidade de continuação de actividade criminosa por parte de padres espalhados pelo país? Mais, tal como relembrou Fernanda Câncio num belíssimo artigo no Diário de Notícias, não estará a Igreja Portuguesa a ir contra os ditames da lei canónica que exige a aplicação de medidas de precaução em casos de abusos? Obviamente que não advogo a existência de julgamentos sumários, nem linchamentos. No entanto, acima de tudo, há que defender potenciais vítimas de abusos reiterados. Dada a gravidade e os relatos que ouvimos, as vítimas devem ser a nossa principal preocupação.

É difícil acreditar que muito daquilo que foi relevado na Gulbenkian não fosse já do conhecimento há anos, em maior ou menor grau, das figuras gradas da Igreja. Depois do choque inicial, é visível que existe uma tentativa de tentar que o assunto morra, com a ajuda de uma comunicação social fraca, que escolheu abdicar do seu papel de quarto poder, e de um sistema judicial esclerosado que está, estranhamente, em silêncio.

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