As democracias ocidentais viveram uma grande ilusão durante os anos 1990 e uma parte significativa dos anos 2000. Acharam que o liberalismo tinha triunfado e não havia adversários à altura. Tinham razão apenas num ponto: derrotados o nacional-socialismo e o comunismo, não sobrava nenhuma ideologia de carácter universalista capaz de inventar um futuro para a humanidade, sobrava apenas o liberalismo para nos guiar num progresso comum. Mas esqueceram-se de um pormenor: o nacionalismo. Acharam as elites, que se tratava de uma forma de barbárie do passado e nem havia grande razão para pensar no assunto – mesmo que nos Balcãs uma forma particularmente agressiva de nacionalismo tenha levado a guerras civis e limpeza étnica.

Percebe-se a razão. Por um lado, um determinado tipo de nacionalismo inspirou ideologias como o fascismo e as suas variantes, que provocaram as maiores tragédias do nosso tempo. Era preciso bani-lo da política. Por outro, as ideologias em confronto na segunda metade do século XX eram universalistas, ou seja, tinham como objetivo final expandir-se por todo o planeta em nome do que cada um acreditava ser o mais conveniente para toda a humanidade. O nacionalismo, pelo contrário, é particularista. Mas não deixa de ser uma ideologia. Com uma especificidade que nenhuma outra tem: é também uma espécie de “cola” que junta uma comunidade – daí que tenha um poder emocional muito forte – e a nação (a que cada um pertence e que tem características específicas) está interiorizada dentro de cada ser humano. Logo, o nacionalismo existe em permanência, independentemente do que depois se possa fazer com ele. E não vai deixar de existir enquanto nos organizarmos internacionalmente como estamos organizados.

Como todas as ilusões, a ilusão liberal caiu com estrondo numa sequela de três partes: em 2003, quando os Estados Unidos ignoraram todas as regras da prudência na política internacional e invadiram o Iraque em nome da segurança, mas também da expansão da democracia. Todos os objetivos da intervenção saíram gorados: Bagdade está longe de ser um Estado de direito, a intervenção militar criou uma desestabilização regional ainda hoje com problemas por solucionar e, talvez mais importante, Estados inimigos aceleraram os seus programas de nuclearização; Estados rivais acharam que a unipolaridade americana era uma ameaça aos seus interesses nacionais e que era preciso contê-la; e os próprios aliados passaram a questionar a liderança moral dos Estados Unidos.

A segunda parte estreou em 2008. A Rússia, através da intervenção militar na Geórgia, e a China, com a organização dos Jogos Olímpicos de Verão, anunciaram ao mundo a sua intenção de se tornarem potências – Moscovo regional e Pequim internacional. Desde então, a Rússia invadiu e anexou a Ucrânia e estendeu consideravelmente a sua influência ao Médio Oriente. A China demonstrou, através da sua impressionante expansão económica, assertividade política e avultado investimento militar, que não quer continuar a receber ordens dos Estados Unidos. Neste momento, já percebemos todos que estamos numa fase de transição de poder e que o mundo terá uma nova configuração, possivelmente com dois polos mais fortes de poder – Washington e Pequim – e Estados que poderão fazer a diferença nas contas das potências. Os mais prováveis são a Rússia e a Índia, esta última ainda pouco considerada, mas não menos importante.

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A terceira e última parte começou com a crise económico-financeira de 2008 que afetou, sobretudo, o mundo ocidental. Não foi só nas carteiras de cada um que ela se fez sentir. Foi na forma como os cidadãos das democracias passaram a creditar à globalização, intimamente ligada ao liberalismo, uma parte significativa dos seus problemas e a olhar à sua volta para encontrar responsáveis políticos e sociais. Encontraram dois: elites liberais (que deixaram acontecer a desregulação dos mercados e, acusam muitos, beneficiaram pessoalmente com isso) e minorias étnicas (também defendidas por essas elites). E identificaram um discurso liberal que ante tantos acontecimentos desagradáveis passou a ser ouvido como vazio, ou mesmo como uma espécie de traição politicamente correta à verdadeira origem e identidade de cada um.

Assim, (1) o declínio moral dos Estados Unidos, a nação liberal por excelência; (2) a ascensão de potências lideradas por homens fortes que usam o orgulho e os ressentimentos nacionais como ferramenta de legitimidade; e (3) as revoltas internas contra o liberalismo e o politicamente correto criaram as condições necessárias para uma ressurgência do nacionalismo no mundo ocidental, em vários casos, nas suas formas menos benignas. E é aqui que estamos.

Assim, há três perguntas importantes no que respeita ao futuro do nacionalismo nas sociedades domésticas e mesmo no sistema internacional. A primeira é: o nacionalismo veio para ficar? A resposta é que o nacionalismo nunca se foi embora. Foi varrido para debaixo do tapete e, como acontece sempre nestas situações, mais tarde ou mais cedo, alguém o pisa e a poeira enche o ar. A negligência política e académica do fenómeno (com raras e honrosas exceções), apenas levou a que deixássemos de perceber o nacionalismo e, consequentemente, não fizéssemos nada para evitar que ressurgisse, em algumas das suas formas perigosas. E estejamos, ainda, atordoados com o seu regresso.

A segunda pergunta prende-se com a natureza do nacionalismo. É mesmo uma ideologia que traz sempre consequências nefastas? A resposta é não. Há ótimos exemplos de nacionalismo construtivo. Os nacionalismos cívicos e inclusivos, dos quais o exemplo mais acabado são justamente os Estados Unidos da América, onde, durante séculos, o que criou identidade foi um conjunto de ideias comuns sobre o que devia ser a nação. Ou os casamentos duradouros e felizes de que fala Liah Greenfeld entre o nacionalismo centrado na dignidade (individual ou coletiva) e a democracia como única forma de pôr em prática esse mesmo direito a existir condignamente, como na tradição britânica.

Mas há dois problemas que vêm em anexo: o nacionalismo é uma ideologia inerentemente competitiva do ponto de vista internacional – o interesse da nação está sempre acima dos interesses de todas as outras nações – e a sua vertente “afetiva”, que pode torná-lo, se instrumentalizado, numa forma de legitimidade de regimes para os quais a dignidade humana não importa nada e a violência é moeda de troca. Assim, se o nacionalismo cria harmonia, pode também criar conflitos com um elemento emocional que atrapalha a prudente e sensata decisão política.

A terceira pergunta torna-se, então, natural: o que fazer para que o nacionalismo esteja ao serviço da harmonia interna e da ausência de conflitos internacionais? A resposta é dupla e vem dos clássicos das relações internacionais: do ponto de vista interno, para que o nacionalismo não se torne violento é preciso manter a tal dignidade. Caso contrário, diz-nos Martin Wight, as populações procurarão ideologias – fora e dentro de portas – que lhes deem conforto e lhes restabeleçam a confiança no futuro. Um nacionalismo com contornos de exclusão de parte da população pode ser uma delas. Do ponto de vista externo, diz-nos E. H. Carr, precisamos de uma ordem internacional sólida, que contenha o nacionalismo na sua versão mais nefasta. Estão proibidas, segundo Hans Kohn, estruturas pan-regionais que reforçam a húbris das nações que compõem estes movimentos.

Nos últimos dois séculos, a democracia liberal deu dignidade interna ao nacionalismo. Os nacionalismos nefastos foram contidos pelo Concerto da Europa desde 1815 até ao início da Primeira Guerra Mundial. Foram também contidos pelas ordens Americana e Soviética desde a Segunda Guerra Mundial até ao fim da Guerra Fria (ainda que não haja comparação entre as duas ordens no que respeita à benignidade de cada uma delas). Nos anos 1990 cometeu-se o erro capital de achar que se podia trocar perpetuamente o nacionalismo pelo universalismo democrático. À primeira crise, a estrutura abalou. Seguiram-se várias outras que só tornaram a situação mais complicada.

E a que propósito vem isto agora? Daqui a menos de um mês disputam-se eleições na maior potência mundial. E os candidatos encarnam nacionalismos substancialmente diferentes, que terão influência na forma como os Estados Unidos farão a sua política externa. E porque da ordem de 1990 resta muito pouco. Vai ser preciso reconstruí-la em moldes mais modestos e possivelmente mais circunscritos, adequados a este novo mundo e que simultaneamente seja compatível com uma ordem global com regras ainda por inventar. Vai levar tempo. Mas parte do sucesso destas ordens estará relacionado com a criação das condições para conter nacionalismos agressivos. Já diziam os clássicos, ainda que usando palavras mais bonitas.