Algo que o movimento conservador Republicano americano usa como slogan político é a sua admiração, lealdade e defesa da Constituição. Para este grupo, o documento é visto como “quasi-místico”, inspirado pelo divino, e escrito por homens impolutos e sábios. Na verdade, a Constituição já foi alvo de várias emendas. Estes processos são um tema fascinante que merecem estudo mais pormenorizado. Porém, voltando à perceção de conservadores Republicanos da Constituição, esta é o garante de todas as liberdades… descontando todas as emendas que vão contra as suas ideias. Como exemplo, as liberdades atribuídas pela Constituição são absolutas na Segunda Emenda, mas discutíveis na Primeira (impossibilidade de testes religiosos pelo Congresso), ou na Décima-quarta ou na Décima-quinta (que protegem minorias).

É na Constituição que está estabelecido qual o funcionamento dos processos eleitorais nos Estados e como estes se relacionam com o poder federal. “O tempo, o lugar e a maneira de realizar eleições para [posições de] Senadores e Representantes (os membros da Casa dos Representantes no Capitólio, ou a “câmara baixa”) deve ser prescrita nas legislaturas dos Estados. Mas o Congresso deve, em qualquer altura, e por leis, fazer, ou alterar essas regras”. James Madison, visto como o “pai” da Constituição Americana, durante a Convenção Constitucional de 1787, argumentou que “as legislaturas dos Estados não devem ter o direito absoluto de regular o tempo, o lugar e a maneira de realizar eleições, porque “estas podem por vezes falhar [de fazer], ou recusar-se [a fazer] a consultar o interesse comum”. Os delegados à Convenção concordaram com esta posição e adotaram, de uma forma unânime, o artigo na Constituição que determina que o Congresso é um sistema de controlo das legislaturas estatais. Outro nome de referência na história dos Estados Unidos da América, Alexander Hamilton, louvou a escolha dos delegados e mostrou-se satisfeito pela capacidade de haver os conhecidos “checks and balances”, restringindo a ação de legisladores locais a um controlo federal.

Também nos Estados existem as respetivas Constituições, que também incluem esses sistemas de controlo partilhado. Os Estados têm os seus órgãos executivos, legislativos e judicial, e o sistema judicial está montado para haver múltiplas instâncias para recurso, terminando com o Supremo Tribunal Estatal. Este é o famoso modelo de Montesquieu, a trias política, onde, se a autoridade legislativa se combina com a autoridade executiva, não há liberdade. Também não há liberdade se a autoridade para julgar não estiver separada da autoridade legislativa. E se for combinado o poder executivo com o judicial, este último terá a força de um opressor.

No dia 7 de dezembro, quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal irá ouvir os argumentos orais no caso Moore v. Harper, apresentado diante de si. O Moore de Moore v. Harper é Timothy Moore, o Líder Republicano da Casa dos Representantes do Estado da Carolina do Norte, que acionou a queixa para o Tribunal Federal relativamente à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Estatal que os distritos eleitorais determinados pela Legislatura, de maioria Republicana, para as eleições intercalares de 2022 eram não constitucionais. Tal decisão baseou-se no facto de que as criações desses distritos criaram “bolsos” de votantes brancos, o que nesse Estado conduz à eleição de representantes Republicanos. As minorias negras e latinas foram remetidas para distritos restritos, resultando num desequilíbrio de poder onde em 14 lugares possíveis, 10 tendem para Republicanos e 4 para Democratas. Isto num Estado com uma maioria branca de 60%. A Legislatura recorreu da decisão para o Supremo Tribunal Federal. Porém, e devido à proximidade das eleições, o Supremo preferiu não se pronunciar, devido ao chamado “princípio de Purcell”.

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O argumento apresentado pelos queixosos resulta de uma interpretação maximalista, que não “originalista”, algo que curiosamente muitos dos conservadores Republicanos também adoram intitular-se, da Constituição, a “teoria da independência das Legislaturas dos Estados”. Resultante da leitura da Cláusula Eleitoral no Artigo 1 da Constituição (apresentada acima) a teoria defende que qualquer decisão tomada pelas Legislaturas relativamente aos processos eleitorais, sejam as regras, o funcionamento, a certificação, depende exclusivamente desse órgão, impedindo tanto tribunais como o poder executivo de as contrapor ou desafiar. Esta teoria é uma construção política liderada por um grupo chamado Honest Elections Project, com ligações a Leonard Leo, ex-conselheiro de Trump, e ex-Vice-presidente do grupo legalista conservador, a Federalist Society. Foi Leo, inclusive, a força por detrás das escolhas do ex-Presidente Trump dos três membros da Federalist Societ para o Supremo Tribunal; Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett, durante a sua Administração. Apoio à teoria, e do teste à sua constitucionalidade foram expressos pelos Juízes Sam Alito, Clarence Thomas e Gorsuch. Kavanaugh mostrou interesse em, pelo menos, haver apresentação de argumentos legais a favor. Este é o mesmo tribunal que, sob a liderança de John Roberts, desmantelou o Voting Rights Act de 1965, que permitia ao governo, em particular ao Departamento de Justiça, avaliar medidas restritivas colocadas localmente para restringir a participação de minorias. E este é o tribunal que restringe o direito à privacidade do cidadão e da primazia do poder Federal sobre o Estatal.

Os efeitos nefastos que a decisão de Moore v. Harper possam ter, se a decisão do Supremo Tribunal Federal for a favor da sua constitucionalidade, são pavorosos, mas precisam de ser escrutinados para se preparar para o pior: caos constitucional onde o sistema de “checks and balances” é obliterado. A impossibilidade de recurso a um agravo por parte de cidadãos, instituições ou órgãos de governação. A potencial subversão de eleições, desde a definição de distritos eleitorais que prejudicam as minorias na sua representação política, à criação de dificuldade para essas minorias votarem, até à capacidade de ignorar resultados eleitorais com justificações tão artificiais como “fraudes eleitorais” inexistentes. Isso pode resultar no envio de “listas de eleitores alternativos ao Colégio Eleitoral”, que define quem é eleito Presidente dos Estados Unidos da América, algo já experimentado (sem sucesso, felizmente) pelas legislaturas de Arizona, Pensilvânia, Michigan na Eleição Presidencial de 2020, com o agora famoso (ou infame) momento de o Vice-presidente Pence recusar-se a receber essas listas que colocariam em causa a contagem dos votos do Colégio Eleitoral no Electoral Count Act do dia 6 de janeiro.

A ameaça é clara e presente: os conservadores Republicanos americanos, cientes de que estão a perder eleições por uma alteração das crenças dos eleitores, ou do aumento de votantes de minorias, ou da participação dos jovens no processo democrático, irão fazer tudo o que podem para continuar no poder, ganhando eleições com votos de um grupo de constituintes brancos com ideias e políticas regressivas, fundamentalistas e exclusivistas. Está agora em poder do Supremo Tribunal manter a democracia representativa que caracteriza os Estados Unidos desde a sua fundação, o que não deixa tranquilos os defensores de democracias liberais, tanto dentro como fora da América.