Esta inflação tem uma origem externa, uma natureza tendencialmente conjuntural e causas conhecidas”, afirmou o primeiro-ministro no discurso que abriu o debate do programa do Governo. Uma frase que, com variantes, foi sendo repetida ao longo dos dois dias, juntando-se ainda a declaração: “todas as organizações internacionais dizem que a inflação é temporária”. Percebe-se o que está a tentar o Governo e todos desejaríamos que fosse bem-sucedido neste seu desejo – mais do que realidade –, já que significaria menos dor no ajustamento futuro. Infelizmente é cada vez maior a probabilidade de estarmos a caminhar para um tempo de inflação duradoura.

Neste momento, na Zona Euro, ainda existem alguns argumentos a favor de “a inflação é temporária”. Mas o pêndulo está, cada dia que passa, a mover-se para um cenário de uma inflação duradoura com crescentes riscos de uma recessão, nesta altura mais assumida nos Estados Unidos do que na União Europeia. E nos Estados Unidos a Reserva Federal já abandonou a versão “temporária” para a inflação, tendo decidido avançar com o aumento da taxa de juro. E em breve devemos assistir ao mesmo, de forma mais explícita no discurso, por parte do BCE, com os juros a subirem no fim do ano. O comportamento da Euribor já expõe quais são as expectativas dos bancos e a própria evolução da “yield curve” – curva com as taxas de juro para os diferentes prazos de empréstimos ao Estado na Zona Euro – também o demonstra.

Os próprios economistas, embora longe da unanimidade, estão cada vez mais a olhar para a inflação como um problema duradouro. Mesmo Paul Krugman deixou de considerar que a inflação é temporária, dizendo agora que será pior antes de melhorar, considerando que as políticas públicas podem moderar o problema, causando menos dor nas pessoas do que a provocada no passado.

As pressões inflacionistas já lá estavam antes do dia 24 de Fevereiro, quando mudou radicalmente o nosso mundo, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. A uma política monetária expansionista juntou-se uma política orçamental na União Europeia e nos Estados Unidos historicamente expansionista. Hoje percebe-se que, quer os apoios à economia, quer os programas para estimular a recuperação – como o próprio Fundo europeu de Recuperação e Resiliência – foram excessivos. Inundaram e continuam a inundar de dinheiro economias sem défice de procura e com défice de oferta por via do estrangulamento dos canais de distribuição.

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A guerra na Ucrânia trouxe novas pressões inflacionistas, com a subida dos preços dos bens alimentares e da energia. Juntemos a isto o efeito – ainda pouco visível – dos confinamentos que estão a acontecer na China. A política “Covid Zero” das autoridades chinesas tem colocado Shangai em confinamento e começa já a ter efeitos nos sectores automóvel e da eletrónica. Além disso assistimos também a uma tendência de desglobalização que vai alimentar a subida dos preços durante mais tempo, tal como a globalização pressionou a descida.

Como se percebe, as pressões chegam de todo o lado. O que ainda não se vê na Europa é a subida dos salários, o que já acontece nos Estados Unidos. E a dimensão dos aumentos salariais pode agora ser bastante mais modesta, se considerarmos que os sindicatos têm hoje menos poder do que nos surtos inflacionistas de finais da década de 70 e início de 80 do século XX. A subida dos salários, por reacção à subida dos preços, é aquilo que os economistas identificam como os efeitos de segunda ordem que alimentam uma espiral de inflação.

É exactamente isto que o Governo quer evitar. Dizendo que a inflação é temporária e que os seus efeitos, de erosão do poder de compra, podem ser mitigados com medidas também elas temporárias, tenta evitar que os salários subam, alimentando mais uma onda de subida dos preços. Se os trabalhadores acreditarem que a inflação é temporária serão também menos reivindicativos garantindo igualmente a frente da paz social.

Aguentar este aumento, protegendo as famílias com rendimentos mais baixos – que não deveria ficar apenas pelos que recebem apoios sociais, mas este é outro tema –, permite criar condições internas para que a inflação seja temporária. Sem qualquer certeza, por causa dos efeitos externos. Mas percebe-se o que o Governo está a tentar fazer. Quer convencer-nos a suportar esta pequena dor para evitar uma dor maior. Porque o combate a uma inflação em espiral é muito dolorosa, provoca recessão e desemprego. O problema é que a onda inflacionista pode ser demasiado forte para ser combatida com medidas de apoio ao poder de compra. Corre o risco de perder a razão. Mas um Governo pode correr mais riscos de perder a razão do que um banco central.