As chamadas “entrevistas de vida” são, por regra, entrevistas “fofinhas”. Faz parte: mais do que confrontar os protagonistas com as suas posições, procura-se que eles se revelem, “mostrando-se” como raramente fazem publicamente. Têm por isso uma desvantagem que é, ao mesmo tempo, uma vantagem: ao não contraditar, ou contraditar muito levemente, os entrevistados, permitem muitas vezes que eles se apresentem mais descontraídos, acabando por dizer o que não diriam se estivessem à defesa, como sucede noutro tipo de entrevistas.

Creio que, numa entrevista mais aguerrida, com perguntas mais desafiantes, Catarina Martins não teria dito o que disse este domingo ao Público: “Todos os dias me arrependo da geringonça”. Com franqueza é uma confissão que pouco adianta, pois o essencial não desaparece, e esse essencial também é admitido na mesma entrevista, quando a líder do Bloco de Esquerda não se limita a repetir a lenga-lenga sobre “travar o empobrecimento do país” como cimento da dita geringonça, mas lhe acrescenta o “afastar a direita do governo”. Mantendo-se válido este segundo objectivo, pouco custará viver com os revezes evidentes na outra frente, pois a economia não tem querido nada com a geringonça, como os números têm atestado de forma quase cruel.

Mas adiante, que o meu ponto principal nem sequer é este. É antes o absoluto vazio de pensamento político que essa mesma entrevista revela. Catarina Martins caiu no goto de muitos eleitores, até eleitores instruídos, mas espremendo o que diz apenas se encontra uma sucessão de lugares comuns cujo significado é difícil de discernir.

Tomemos, por exemplo, a seguinte passagem dessa entrevista:

“Não há ninguém que não assuma que é preciso reestruturar a dívida. É um processo que devia ser aberto e Portugal não devia ficar sempre à espera. Ficamos à espera de quê? Que a Goldman Sachs mande um bocadinho mais? Não vamos nunca reestruturar a dívida?”

A primeira perplexidade é fácil de detectar: o que está a Goldman Sachs a fazer neste molho de frases? Ela manda “um bocadinho mais” em quê? Na nossa dívida? Nas opções da senhora Merkel? Na Comissão Europeia? Na verdade, em parte nenhuma, a não ser na cabeça dos maluquinhos das teorias da conspiração. Contudo fica sempre bem deixar cair uma frase sobre a Goldman Sachs, pois tem o mesmo efeito que invocar Satanás tinha na Idade Média – e por isso mesmo tem o mesmo significado, ou seja, nenhum.

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E, depois, o que é reestruturar a dívida? Catarina nunca explica, pois se o fizesse teria de se comprometer com soluções que, como todas as soluções, teriam consequências e custos. Ora, na linguagem do Bloco e da Catarina, nunca há custos, há só ganhos.

E fantasmas. Senão vejamos esta outra passagem da mesma entrevista:

“O maior risco é perdermos todo o controlo sobre o sistema financeiro, porque aí a democracia passa a ser uma fantochada, deixamos de ter capacidade de decidir sobre o que quer que seja.”

Mais uma vez não consigo compreender onde quer chegar a líder do Bloco chegar. Primeiro: o que significa controlar o sistema financeiro? É ter bancos públicos? É manter a banca em mãos portuguesas? É ter os bancos sob o controlo do Banco de Portugal e não do Banco Central Europeu? É manter a Caixa-Geral de Depósitos? Não se percebe – só se percebe que Catarina surfa a onda que está a dar, e o que está a dar é dizer mal dos banqueiros, do BCE e das regras europeias.

Depois, onde é que o controlo do sistema financeiro casa com uma democracia que não seja uma fantochada? Se Catarina dissesse que era preciso recuperar o controlo da política monetária para voltarmos a ter poder de decisão, e mais soberania, eu compreenderia. Mas não é isso que ela diz, pelo que fico na dúvida. Sugere Catarina que, para haver democracia, a nossa “capacidade de decidir” implicará dar ordens aos bancos? E que tipo de ordens?

Bem sei que os nossos banqueiros deram todos os motivos aos políticos para estes se armarem em donzelas, mas a verdade é que os banqueiros públicos, sobretudo quando receberam ordens de governos, conseguiram fazer tão mal ou mesmo pior que alguns dos privados, como agora se está a ver com a Caixa Geral de Depósitos, o banco onde a recapitalização, tudo somado, acabará por ser a que mais dinheiro custará aos portugueses.

Numa outra passagem da mesma entrevista Catarina vai mesmo mais longe:

“A ideia de dependência do nosso Estado não tem a ver com a capacidade produtiva do país, nem com os salários das pessoas, nem o peso do Estado Social, mas só com o sistema financeiro.”

Ou seja: nós somos ricos, pois não há nenhum problema com a capacidade produtiva do país; nós também somos competitivos, pois não há nenhum problema com a nossa competitividade; e não tivemos défices crónicos, e elevados, e permanentes, nos 40 anos de democracia, pois também não há nenhum problema com os custos crescentes do Estado Social. Se temos problemas, estão no sistema financeiro e só no sistema financeiro. É o que se chama tomar a parte pelo todo para evitar olhar para as outras debilidades de Portugal. Enquanto houver um bode expiatório, sobretudo enquanto houver alguém a quem as Catarinas desta terra possam apontar o dedo e atribuir culpas, tudo o resto estará bem.

Mas o discurso de Catarina não necessita de ser sólido ou coerente para passar levemente, muito levemente, esvoaçando como a brisa da tarde, sempre sem ser seriamente contraditado. Há uma outra passagem da entrevista que é disso um bom exemplo:

“O problema é a política do ódio. Está a crescer. É o mais perigoso de tudo. A política do ódio acontece quando a NATO bombardeia, quando Donald Trump faz uma campanha a hostilizar uma parte do mundo, quando a União Europeia trata parte do seu povo como se estivesse sob suspeita permanente”.

Repare-se bem na quantidade de fenómenos de características completamente diferentes que Catarina mete no mesmo saco. A campanha de Trump pode ser definida como “política do ódio”? Aceito, e muitos também aceitarão sem contestação. Mas o que é que isso tem a ver com “os bombardeamentos da NATO”? Quais bombardeamentos? Os da Síria? Os da Líbia? Estará Catarina ao lado de Assad, ou do Estado Islâmico, ou de Kadhafi? Ou estará apenas a repetir o velho lugar-comum da esquerda-radical anti-NATO e anti-atlantista? É que, nessa frente, nesse combate, terá a seu lado… Donald Trump. Ou com Marine Le Pen. E, já agora, qual é a parte do povo da União Europeia que esta trata como se estivesse sobre suspeita? Os portugueses? Os gregos? Ou os britânicos, contra os quais estão hoje dirigidas todas as baterias depois de estes terem votado pelo Brexit?

Nestes molhos de palavras, que repete sempre de forma torrencial, não parece ser necessário encontrar um sentido – só importa cavalgar o preconceito do momento. Os sound-bytes são aqui bem mais eficazes do que os sound-bytes de outros especialistas no género, pois estes limitam-se a seguir o espírito do tempo.

De novo um bom exemplo disso é o slogan que o Bloco afixou por todo o país, em enormes outdoors:

“Não às sanções, não à chantagem, Portugal é uma democracia”.

Esta frase é uma excelente expressão do populismo reinante. O ponto não é saber se concordamos ou não com as sanções ou o que definimos como chantagem – o ponto é saber o que caracteriza uma democracia. Na cabeça dos populistas, democracia é a vontade a maioria. Isso basta-lhes. Sobretudo se a única maioria que importa for a sua própria maioria (se acontecer o contrário já é mais duvidoso que seja uma democracia, pois nessa altura estarão pelas ruas de todo o país a pintar paredes pedindo a dissolução da maioria que lhes for desfavorável).

Acontece que a democracia é sobretudo sobre regras do jogo, sobre governo limitado, sobre equilíbrio de poderes e sobre respeito pelas minorias. Isto porque as maiorias vão e vêm, e essa é a riqueza do sistema, o único que assegura mudanças pacíficas de governo. No caso concreto da nossa relação com a Europa, democracia representa sobretudo duas coisas: primeiro, respeitar as regras europeias que subscrevemos; depois, aceitar que, sendo esta uma Europa de Estados e nações, há nela outras maiorias e outras vontades democraticamente expressas, que merecem tanto respeito como a nossa maioria e a nossa vontade.

O Bloco não gosta das limitações à soberania que algumas dessas regras implicam? Eu também não gosto. Mas aceitá-las foi a escolha maioritária – esmagadoramente maioritária – dos representantes eleitos dos portugueses. Foram eles que aceitaram estas regras acreditando nas vantagens que elas trariam. Podemos sempre arranjar forma de as reverter, como os britânicos arranjaram. Mas então teremos também de pesar as consequências. Quer Catarina fazê-lo? Claro que não, pois isso seria bem mais arriscado e impopular.

Por outro lado, a maior limitação à nossa soberania nem sequer são as regras europeias – é a nossa dívida. Pior: é o nosso défice, pois é ele que continua a fazer crescer a dívida e a obrigar-nos a continuar a pedir dinheiro emprestado. E Catarina, que acha que tudo se resolveria reestruturando a dívida, acha também que a seguir poderíamos continuar a ter défices públicos e a encontrar quem os financiasse depois de ter perdido o dinheiro que antes nos emprestara.

Neste seu país de conto de fadas não custa a Catarina despejar frases sonantes mas sem grande sentido – tudo porque no país real que somos ninguém lhe faz a pergunta que era importante fazer: mas quem é que cria a riqueza para pagar mais Estado e mais consumo? Nós ou os alemães? E quererão eles pagar – democraticamente – os nossos défices?

Por isso ainda bem que há entrevistas “fofinhas” para percebermos a insustentável leveza de alguns dos nossos heróis políticos.