Quando temos 20 anos e somos estudantes de direito internacional num curso de direito, somos, logo nas primeiras aulas, alertados pelo respetivo docente da cadeira de que este é um ramo que sempre nos colocará vários problemas de ordem teórica e de ordem prática ao longo da nossa vida.

Primeiro porque grande parte dos normativos de direito internacional são aquilo a que chamamos de soft law. Quer isto dizer que, no direito internacional, a coercividade e coatividade, que são características intrínsecas da ordem de jurídica, distinguindo-a das demais ordens normativas, nem sempre são fortes ou eficazes.

O próprio mestre Savigny chegou a afirmar que o direito internacional não poderia ser considerado um verdadeiro ramo do Direito, uma vez que o cumprimento das normas internacionais depende, essencialmente, da adoção voluntária do comportamento aí prescrito.

E não deixa de ser verdade que ele é, basicamente, cumprido pelos Estados quando esse cumprimento for impulsionado pela convicção da sua necessidade e porque, supostamente, reflete os próprios interesses de cada Estado que com ele se comprometeu.

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A eficácia das sanções internacionais depende, essencialmente, da capacidade do Estado sancionado resistir a essas mesmas sanções, uma vez que ele nunca perde soberania para a comunidade internacional. E embora exista um relativo afrouxamento da soberania dos Estados no plano sancionatório internacional, ainda não existe um verdadeiro sistema supranacional coativo, o que faz com que o sucesso da aplicação das sanções internacionais dependa sempre de um misto de cooperação e sujeição.

A guerra que hoje vivemos na Europa é um triste exemplo desta insustentável leveza do direito internacional, suscetível aos caprichos dos atores internacionais e da sua capacidade de mitigar os efeitos de eventuais sanções económicas, certamente e antecipadamente previstas e calculadas.

A memória da História vai-se perdendo nas páginas dos livros e enciclopédias e as palavras escritas acabam por se esbater no papel, afastando-se do espírito e das razões pelas quais foram escritas.

Não é de espantar que tenha sido, precisamente, em 1945, no final da II Grande Guerra, quando a memória ainda estava dramaticamente fresca, que os 51 Estados que a assinaram inicialmente se declararam, na Carta das Nações Unidas, “decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade”. Mas as gerações que ainda se lembravam do flagelo da Guerra vão desaparecendo e dando lugar a novas gerações que nenhuma memória guardam ou dela poderiam ter.

A confiança nas palavras firmadas em 1945, e numa instituição que hoje conta com 193 membros, fez com que a comunidade internacional subestimasse o valor da palavra “soberania” para o regime de Putin, com valores ainda muito diferentes dos valores ocidentais e com uma mágoa para com o Ocidente que certamente não seria resolvida no divã de um psicoterapeuta.

Putin, muito provavelmente, arriscou a invasão da Ucrânia após vários cálculos financeiros que lhe permitiram antecipar formas de resistir às certamente antevistas sanções económicas que adviriam da comunidade internacional e, ao mesmo tempo, projetar formas de retaliação, de tal forma efetivas que podemos hoje falar de uma guerra em duas frentes: a militar e a económica. A militar contra a Ucrânia e a económica entre o resto do globo que se opõe às ações da Rússia naquele país.

Zelensky tem razão: estamos todos em guerra.

Mas em 2022, com níveis de tecnologia totalmente diferentes dos que tínhamos na primeira metade do século XX, ultrapassar a linha de fronteira entre a guerra económica e a militar poderá ser apocalíptico, em especial se essa intervenção militar for feita em retaliação a um regime liderado por alguém com o perfil de Putin: autoritário, aparentemente calculista e pouco sensível às vidas que seriam perdidas na eventualidade do eclodir de uma guerra nuclear, química ou biológica com a qual nos acena.

Queríamos fazer mais pelos Ucranianos mas sabemos que não podemos.

E, no entanto, estamos todos, de uma maneira ou de outra a contornar o Direito. Alguns dos Estados, arrisco dizer, pelos melhores motivos: querem ajudar as vítimas da guerra militar e vão além dos seus compromissos e obrigações internacionais ao mesmo tempo que se permitem derrogar algumas obrigações que os vinculam. Algumas sanções impostas à Rússia não serão, de facto, legais à luz do Direito Internacional. Mas o que a Rússia está a fazer na Ucrânia também não o é. Que não restem dúvidas disso.

Resta-nos perguntar quem pagará a fatura dos efeitos deste conflito e todas as decisões nele tomadas nas gerações vindouras e que já são vítimas desta guerra. E falo daquelas que ainda não nasceram e das que, já tendo nascido, não votaram em Putin nem em nenhum outro líder atual (porque simplesmente não tinham idade para votar).

Como vamos explicar diplomacia e direito internacional às crianças que já morreram no conflito (não vamos), às que perderam o Pai, o Avô, o Tio ou o seu cão e o gato numa guerra sobre a qual nunca foram ouvidas? Como lhes vamos explicar que tiveram de abandonar o seu país, que a sua família teve de abandonar todos os bens (que um dia provavelmente iriam herdar) e que por isso não têm uma vida tão abonada como poderiam ter? Como lhes vamos explicar que crescerão mais pobres, sem parte da sua família e que as cidades e o mundo natural no seu país foram destruídos intencionalmente por alguém que não respeitou (e que até se legitimou nele) o direito internacional?

A União Europeia tem agora uma oportunidade de ouro para equacionar dar um passo maior e já muito desejado por grande parte dos Estados-membros, rumo a uma maior integração política, quiçá, através da criação de mecanismos de defesa militares conjuntos.

O direito internacional, em particular o sistema das Nações Unidas, e também o direito internacional regional como é o caso do Direito Europeu, precisa de se reinventar e adaptar aos novos tempos, a uma sociedade internacional totalmente globalizada e, como infelizmente se constata, com novos desafios e novos perigos. É urgente proteger juridicamente as gerações futuras, para além das boas intenções do Direito Internacional.

Porque, em 2022, é seguro afirmar-se que as Nações Unidas e o Direito Internacional não nos salvarão.