Num documentário que no outro dia vi na Netflix fazia-se pouco das teorias da conspiração e dos seus alegados aderentes. Sempre me pareceu que agarrar uma teoria da conspiração corresponde à insegurança típica de quem teme não conhecer todas as circunstâncias que nos cercam. Nessa medida, a teoria da conspiração funciona como uma vacina para a doença que a vida real é: “a mim ninguém me pode enganar porque eu sei o que todos os outros estão demasiado enganados para saber”. Que tipo de vida vem da garantia de não poder ser enganado? Se o tipo de conhecimento que o teórico da conspiração procura é um antídoto contra a possibilidade de engano, ele acabará o mais enganado de todos, parece-me.

Mas, por outro lado, também me identifico com as teorias da conspiração. Como Joseph Heller escreveu no “Catch 22”, “não é por seres paranóico que significa que não andem atrás de ti”. E quando essas tocas de coelho me atraem, não me custa acreditar que a internet, por exemplo, é um tipo de Anti-Cristo. Não sou optimista quando nos entregamos à internet sem uma ponta de paranóia. Afinal, tão assustadora é a pessoa que se julga incapaz de ser enganada como aquela que julga que o mundo não arranjará maneira de, volta e meia, conspirar contra si. E, acreditem: em quase trinta anos de convívio com a internet, os malefícios de usá-la sem uma ponta de paranóia têm sido uns quantos. Logo, este texto contribui para a causa: menos internet, mais vida (o que se torna paradoxal porque é à custa da rede que o está a ler).

A internet fez-nos ricos daquela maneira que facilita a nossa perdição. Há um ponto em que o nosso acesso à informação se torna uma posse desmedida, sem celeiros para a comportar. É a partir dessa fartura que precisamos de criar novos armazéns para o tanto que temos. Temos tanto, tanto, tanto, que nem sequer sabemos por onde começar a usufruir dele. Daí que pensamos o que pensou aquele pobre rico na parábola de Jesus: “Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: Farei isto: destruirei os meus celeiros, reconstruí-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens” (Lucas 12:17-18). Para todos os efeitos, a internet também é o nosso excesso a precisar de celeiros novos e a tragédia que daí nasce.

O nosso problema hoje não é ter; é escolher no muito que temos. É desta dificuldade que veio a era dos curadores, que é apenas uma palavra supostamente aperaltada para quem faz o trabalho sujo de seleccionar. Hoje há curadores de playlists do Spotify, tal a nossa necessidade de aconchego no excesso. Até eu dou por mim, apalermado, funcionando como curador de mim próprio, estabelecendo listas das canções que vou ouvir e dos filmes que vou ver, agora que por tão pouco tanto me é dado. Antes podemos ter achado que o mal que vivíamos se relacionava com o que não tínhamos; hoje o mal que vivemos vem do tanto que temos e que não é humanamente possível usufruir. Para alguém ouvir ou ver tudo o que é seu, através da internet que tem, precisa de uma eternidade que rapidamente mais se assemelha a uma pena do que a um privilégio.

Continua a surpreender-me que as imagens mais eficazes de maldição na Bíblia não venham de pessoas com mãos vazias, mas de pessoas com mãos cheias. Por exemplo, também é a expressão dessas mãos vazias que está em causa quando num serviço de culto alguém as eleva em adoração. Pessoas de mãos no ar num culto evangélico celebram a vitória dos desapossados, que nada têm a mostrar a Deus, aos outros ou a si mesmos. Não têm nada e por isso levantam as mãos ao ar, num sinal que não é louvor sem ser de rendição também—quando somos assaltados fazemos o mesmo. Amo levantar as mãos no culto porque diante de Deus não há nada melhor do que mostrar que não trazemos nada na manga. Somos como viemos—nus, miseráveis, pedintes. Gente endinheirada não levanta as mãos que tem cheias.

Não quero, no entanto, idealizar a pobreza (para breve planeio reescrever um texto em que no passado tentei explicar que o pobre de outrora era mais do que o que não tinha dinheiro—era aquele considerado amaldiçoado). Sou suficientemente protestante para desconfiar de mistificar a carência alheia num passe fajuto de vidência. Ser pobre, como os miúdos hoje dizem no inglês original, sucks. Mas também é verdade que o que estraga a vida da maioria dos portugueses no Século XXI não é a proximidade da pobreza mas as intermitências da prosperidade (esta saiu à Saramago…). E, neste caso, penso na riqueza com que a internet nos vai convencendo dos muitos que assumimos: lemos muito, vemos muito, sabemos muito. Estamos no processo de construção de novos discos, novas clouds, novos diques para as nossas torrenciais sabedorias. Sábios? É mais o contrário: loucos.

Se arranjarmos depósitos para o tanto que temos poderemos finalmente descansar e, então, comer e beber, regalarmo-nos, enfim, no tanto que acumulámos. E Jesus remata, com uma ponta de humor saudavelmente sinistro: “ó otário, morres hoje ainda e o que juntaste vai ficar para quem?” (a paráfrase, bastante livre, é naturalmente minha). No Catolicismo é normal falar na preferência que Deus tem pelos pobres. Fica bonito dizer isso mas tenho dificuldade de encontrar substância bíblica na ideia (tenho mesmo de publicar aquele texto sobre ser pobre…). Parece-me mais apropriado falar no desprazer que Deus tem com os ricos, o que não é necessariamente a mesma coisa que amar preferencialmente os pobres. Sobre quem acumula pende uma desconfiança divina—isso sim. Porque há uma medida em que quem acumula, não arrisca, não corre o risco de perder. E numa religião que tem o momento chave na morte numa cruz, arriscar não perder é a blasfémia das blasfémias.

A internet também é o que nos aconteceu por termos tanta informação acumulada. E se não planeio louvar qualquer tipo de santa ignorância, sei (de saber mesmo) que só fica o de que se abdica (saiu em rima mas não foi planeado). Na fartura, reaprender a ter fome é lutar contra o Anti-Cristo.

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