Os tribunais não são um local, um sítio, um decisor, uma secretaria, mas um serviço complexo de natureza pública. Não são um serviço qualquer, são um serviço essencial num sistema em que aos cidadãos não é possível exercer a autotutela para defender os seus direitos.

Em tempos pandémicos e ironicamente a pedido dos mais inusitados protagonistas – e precisamente quando o serviço de concessão de tutela judicial era mais importante – os tribunais paralisaram durante quase três meses.

Cometeram-se vários erros.

O primeiro erro foi ter sido decretada, com algumas exceções, uma suspensão generalizada de prazos processuais.

O segundo, foi recorrer à diferenciação entre processos urgentes e não urgentes para decidir o que não pode deixar de ter tutela judicial em tempos pandémicos e aquela em que a concessão de tutela pode ser diferida, desconhecendo que as necessidades ou justificações que estão subjacentes à atribuição de caráter urgente a certos processos em tempos normais não coincidem com outras situações de vida que teriam justificado a atribuição de urgência em contexto pandémico.

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O terceiro consubstanciou-se em ter permitido que a realização de diligências à distância tivesse ficado na dependência da vontade das partes e ou dos seus mandatários, pois sabemos que as partes num processo, porque são partes reais e não partes ideais, não estão interessadas no regular andamento do processo na mesma medida.

O quarto erro – e talvez o mais grave – residiu em não entregar ao juiz a decisão sobre se em cada caso concreto havia ou não condições para realizar as diligências e de que modo. Devia ter competido ao juiz a determinação das garantias e das condições que seria necessário reunir, para que o processo de decisão continuasse justo e legitimador da decisão final, através da qual o decisor concede ou não concede a tutela requerida com o mínimo risco de contágio.

O que interessa aqui afirmar, é que havia e há alternativas à paralisação dos tribunais e nunca foi necessária a suspensão dos prazos processuais para evitar os contágios e achatar a curva. O Ministério da Justiça podia ter protocolado com a Ordem dos Notários a facilitação de prestação de depoimentos prestados em cartórios de proximidade dos envolvidos e aproveitar, até, as competências notariais para garantir a identificação de quem depõe e as condições do depoimento ser prestado sem interferências.

Por outro lado, o instrumento processual do justo impedimento, tal como está, ou mesmo ligeiramente flexibilizado com uma cirúrgica intervenção legislativa, poderia ter sido crucial para evitar a suspensão dos prazos, pelo que se uma parte invocasse fundamentadamente dificuldade na prática tempestiva de um dado ato processual, a prática do mesmo poderia ser judicialmente diferida, ou o mesmo ser praticado dentro do prazo fixado, sem prejuízo de poder ser complementado ou melhorado em momento ulterior.

Lida agora a Proposta de Lei nº 70/XIV, a primeira ideia que retirámos é a de que, em termos gerais, o proponente da mesma considera que há maior risco de contágio a elaborar e apresentar peças processuais dentro dos prazos processuais legais em vigor do que a realizar diligências processuais, pois que os prazos em processo não urgentes estão suspensos, mas as diligências processuais em processos desta natureza agora já podem ser realizadas presencialmente ou à distância. Mas mais: basta os prazos estarem suspensos para algumas diligências agendadas poderem vir a ficar, também elas, adiadas, postergando as propostas regras de manutenção das mesmas, ainda que à distância.

Estamos num estado de medo e desnorte tal que não vemos o que é fundamental: um Estado de Direito não pode permitir, quanto mais fomentar, que os tribunais reduzam ou paralisem o exercício da função jurisdicional. Em momentos de crise como este é que os tribunais se revelam da maior importância, porque é em contextos de crise como este que os direitos das pessoas são mais ameaçados ou violados.

Se ao primeiro toque de crise, a decisão de paralisar a atividade judicial foi um erro de que benevolamente se admite justificação, pelo medo do desconhecido e pelo alarme causado por uma doença terrível e de contágio rápido, a reincidência nesta decisão, 10 meses depois, é um erro crasso e imperdoável causador de um dano dificilmente reparável na nossa democracia e de que a imagem dos tribunais nunca mais vai recuperar.

É triste, mas não é estranho. Afinal, a pandemia – como qualquer momento de crise – veio apenas por a descoberto aquilo que já todos sabíamos e sentimos diariamente: que os tribunais não são tomados como essenciais ao funcionamento de um Estado de Direito democrático, sofrendo e perdendo sibilinamente, pelas mais diversas vias, a sua visceral independência.