A propósito do artigo do Dr. Luís Carvalho Rodrigues, datado de 12/12, em que refere que “a esquizofrenia é uma questão de fé”, porque não se encontrou ainda uma base neurobiológica específica, venho aproveitar para desmistificar esta visão ingenuamente simplista da psiquiatria e da doença mental, mas que persiste em assolar-nos.

A história da doença mental e da psiquiatria, que nasce com ela, começa muito antes do século XIX. Desde Hipócrates há relatos de investigações sobre as diferentes formas de manifestação do sofrimento psíquico e as formas de o aliviar.

Esse é de facto o objectivo da psiquiatria: o alivio do sofrimento psíquico e da disfunção que ele provoca. Para que este seja alcançado, como em todas as ciências médicas é necessário definir um método de investigação para que se encontre a forma mais eficaz de trazer soluções para os pacientes que procuram o psiquiatra.

O objecto da investigação em psiquiatria é o sintoma mental (que se manifesta através de comportamentos, formas de pensar e de sentir), a manifestação mais fiel do que se passa na mente dos pacientes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ao longo do tempo foram se construindo, como no resto da medicina, síndromes, ou seja, conjuntos de sintomas que através da experiência clínica os médicos compreenderam que se agrupavam frequentemente e que e que por isso poderiam constituir perturbações. Assim, surgem as primeiras hipóteses de perturbações que nascem da intuição clínica integrada num contexto social e histórico especifico em que o sofrimento e a disfunção social se contextualizam.

No século XX, com a evolução das ciências médica em geral, a psiquiatria começa a sentir necessidade de validar os seus diagnósticos. Isto é de provar que as perturbações psiquiátricas realmente existem.

Nos anos 1970 um grupo de psiquiatras de St. Louis (EUA) define um conjunto critérios específicos que as perturbações deverão seguir para serem consideradas válidas. Entre elas, uma evolução clínica semelhante, uma boa delimitação das outras perturbações, evidencias de hereditariedade, e a existência de marcadores biológicos que estejam na sua base.

Com base nesta postura mais científica e numa tentativa de aumentar a fiabilidade (concordância entre os vários psiquiatras relativamente ao diagnostico), cria-se, em 1980, o manual DSM-III, que viria a tentar aumentar o carácter científico da psiquiatria.

Este começa por fazer uma definição lata de doença mental: “síndrome ou padrão comportamental que ocorre num individuo e que se associa tipicamente a sofrimento (distress) ou disfunção em uma ou mais áreas do seu funcionamento (disability)”

Propõem uma lista de perturbações com base nas evidências de até então, mas que deverá ser susceptível de ser retificada posteriormente de acordo com os novos estudos e com os critérios de validade estipulados.

Nos dias que correm passados, já 36 anos, os critérios propostos para provar a validade destas perturbações não foram ainda todos verificados com rigor, sobretudo o que exige a confirmação das doenças mentais em achados das neurociências.

Nos últimos anos, tem havido uma obsessão em procurar uma causa neurobiológica especifica para as doenças mentais, assim como ocorreu no fim do século XIX. Esta tentativa idealiza melhorar o estatuto científico da psiquiatria e calar as vozes do movimento da anti-psiquiatria que afirma que a doença mental não existe porque não se encontra uma disfunção orgânica especifica que esteja por trás, como acontece nas outras doenças médicas.

No entanto novos movimentos de reflexão surgem também para criticar esta forma redutora de ver a psiquiatria. Os sintomas e as doenças mentais são constructos híbridos compostos por elementos das neurociências mas também conceitos abstratos, porque tentam abarcar a subjetividade do agir e sentir humano.

O facto de não ser claro que as doenças psiquiátricas sejam semelhantes às doenças físicas, parecendo ter especificidades conceptuais, implica que metodologia da sua investigação e de provar que são reais poderá ter de ser também especial.

Será correcto que a aceitação da existência das perturbações psiquiátricas, tão próximas da condição humana e sua subjectividade, depende unicamente de provar a sua natureza biológica? Ou seja as queixas subjectivas dos pacientes são irrelevantes se não as conseguimos correlacionar com estruturas neurobiológicas especificas?

Uma vez que a perturbação psiquiátrica se relaciona na sua base conceptual com a experiência humana, outros parâmetros deveriam eticamente ser considerados para delimitar a sua existência (p ex. distress, disability).

Não há duvidas que na base das manifestações da doença mental está um substrato orgânico, mas não é sensato reduzir estas doenças a doenças unicamente do cérebro. Novas evidências certamente surgirão desta reflexão e que clarifiquem a relação entre mente e cérebro.

Até então as categorias diagnosticas (fruto de grande trabalho de investigação) que persistem serão utilizadas para ajudar a orientar o tratamento das pessoas que sofrem de doença mental e que hoje têm a oportunidade de usufruir de terapêuticas farmacológicas e psicoterapêuticas muito mais eficazes do que os pacientes do século passado. Por isso, mesmo que ainda não se saibam as causas neurobiológicas especificas que estão por trás da esquizofrenia ou da depressão vamos continuar a usar os meios que temos para reduzir o sofrimento dos nossos doentes.

A psiquiatria é uma questão de ciência, uma ciência que conjuga desde sempre elementos das ciências naturais e das ciências sociais e humanas (filosofia, sociologia e história), o que a torna conceptualmente mais complexa.

Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta, professor de História da Medicina, Psicopatologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa, assistente hospitalar de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria e vice-presidente da Associação Portuguesa de Psicopatologia


Comentário de Luís Carvalho Rodrigues:

Diz o professor Telles Correia que “No século XX … a psiquiatria começa a sentir necessidade de validar os seus diagnósticos. … cria-se, em 1980, o manual DSM-III, que viria a tentar aumentar o carácter científico da psiquiatria. … passados, já 36 anos, os critérios propostos para provar a validade destas perturbações não foram ainda todos verificados com rigor.” Creio que não se pode ser mais eloquente sobre a (ausência de) qualidade da evidência psiquiátrica.

A verdade é que “o sintoma mental (que se manifesta através de comportamentos, formas de pensar e de sentir)” foi, durante boa parte do século XX, suporte suficiente para inacreditáveis violações dos direitos civis. É possível que a conjunção de “elementos das ciências naturais e das ciências sociais e humanas” torne a psiquiatria “conceptualmente mais complexa”, mas isso não chega para a subtrair às vulgares obrigações de decência.

O que preocupa não é a ficção que Kraepelin e Bleuler produziram há cem anos mas sim que, ao afirmar-se que “Novas evidências certamente surgirão … que clarifiquem a relação entre mente e cérebro”, se continue de facto a agir com base no que se acredita que irá ser descoberto ou verificado e não no que foi de facto descoberto ou verificado.