A recente retirada dos EUA da Síria, que abriu a porta ao ataque turco às forças curdas, aliadas do Ocidente que permitiram a derrota do Estado Islâmico com base territorial, constitui mais uma demonstração da irrelevância politico-militar da Europa no panorama internacional, o que a médio prazo porá em causa a sua própria sobrevivência.

Neste episódio, além da traição aos nossos aliados curdos, mesmo do ponto de vista do interesse puro e duro (que, como sabemos, é a única motivação em política internacional), a Europa tem necessidade absoluta dos curdos, para evitar o ressurgimento de bases territoriais do Daesh, para manter controlados os milhares de prisioneiros cuja libertação será desastrosa e até para evitar novas vagas de refugiados, que além dos problemas humanitários, irá criar mais pressão sobre as fronteiras europeias.

O grande problema que existe há décadas e que se tem vindo a agravar, é que a Europa tem uma alarmante incapacidade militar e ainda maior incapacidade de cooperação e decisão politico-militar, o que, sendo compreensível por se tratar de um mosaico de países com tradição de séculos de rivalidades e guerras, é inaceitável para um bloco que conseguiu um nível de integração e políticas comuns nunca antes alcançados (inclusivé em áreas muito difíceis), e que pretende ser um bloco com influência global.

Ora, a história, a prática e até o simples bom senso, demonstram que não há possibilidade de ser um actor global sem capacidade militar, tanto a nível operacional como de decisão, e a substituição dessa capacidade e da sua utilização pelas sanções económicas ou embargos de armas, como a Europa tem pretendido fazer, tem um alcance muito limitado.

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Quando se lida com potências agressoras só a força ou a dissuasão pela força é eficaz. Neste caso, se além das forças americanas existissem e continuassem no terreno forças europeias com capacidade operacional semelhante, a Turquia não se atreveria a atacar, como aliás aconteceu até à retirada dos EUA.

1 O abandono dos curdos e as suas consequências, que já se começam a sentir e que se agravarão significativamente, é apenas mais uma prova de que a Europa não pode continuar a depender dos EUA para a sua defesa e afirmação estratégica, devendo ter capacidade militar própria e um sistema de coordenação-decisão (que não é fácil mas tem que começar a ser construído), que permita a sua utilização.

Não defendo a existência de um Exército Europeu supra-nacional que se substitua às forças armadas nacionais, que devem continuar a existir e com crescente eficácia (invertendo o processo de desinvestimento militar generalizado que se verificou a partir dos anos 80 do séc. XX), não só como último reduto de soberania, mas também como base de uma Força de Defesa Europeia permanente, que se deve alimentar do conjunto das forças nacionais.

Essa força militar, nas vertentes terreste, naval e área, deverá poder actuar em coordenação com a NATO, mas tem que ter independência de comando e acção para que possa funcionar uma uma verdadeira força de defesa comunitária, sem estar dependente do interesse americano ou até, como é o caso na Questão Curda, poder tomar posição quando o agressor é outro país da NATO, neste caso a Turquia.

A força de defesa deverá ter uma base territorial, de preferência com bases nos países periféricos da União e a capacidade de projecção para poder ser utilizada em qualquer teatro de operações a nível global. Como os riscos que enfrenta, tanto os que já se manifestam, como o terrorismo e o crescente intervencionismo russo (Médio Oriente, Ucrânia, Crimeia, pressão sobre os países periféricos da UE, manobras com a China, etc), como os que se estão a desenvolver, como o enorme poderio militar chinês e as tentações que invariavelmente decorrem da associação do grande poder militar ao económico, sobretudo em países não democráticos, a Europa só poderá garantir a sobrevivência a médio e longo prazo, assumindo a defesa como uma prioridade.

O grande problema que se coloca é que, além das dificuldades de ordem “natural”, como as decorrentes da diversidade de países e interesses estratégicos e a orçamental, que com maior ou menor dificuldade poderiam ser ultrapassadas, o maior obstáculo é de carácter sócio- -cultural e de mentalidades.

2 Na Europa Ocidental, a inédita ausência de conflitos armados desde 1945 (os que existiram foram na periferia, caso da ex-Jugoslávia) e o bem estar gerado por várias décadas de paz, liberdade e benefícios do estado social, sendo conquistas civilizacionais únicas que têm que ser preservadas, criaram, aliadas a outros factores adiante referidos, a ilusão de que a paz e a liberdade eram valores definitivamente adquiridos, que se manteriam por si só e sem exigência de sacrifícios, esquecendo o velho ditado romano si vis pacem para bellum (se queres paz prepara a guerra).

Aliás, o que se passou nos anos 30 do século XX, foi apenas mais uma prova de que as potências totalitárias com tendências agressoras e expansionistas, não são travadas pela dissuasão pacífica, que apenas funciona como convite à agressão.

Desde os anos 80 do séc. XX, estamos a viver um processo de enfraquecimento acelerado, que se manifesta na secundarização das questões relacionadas com a defesa, frequentemente tratadas como um “luxo”, ou uma despesa desnecessária, cujas consequências são visíveis no desinvestimento generalizado em defesa e no fim do serviço militar obrigatoório em grande parte dos países da Europa Ocidental.

As razões para esse enfraquecimento são muitas e não caberiam no âmbito de apenas um artigo, mas além do já referido período de paz e prosperidade, há outros factores, como a influéncia do flower-power dos anos 60, a reacção à rigidez de alguns aspectos da educação até essa década que deu lugar a exageros no sentido contrário, nomeadamente o amolecimento generalizado na formação e educação das novas gerações, desvalorizando-se a exigência, o esforço e valores como a coragem e a frontalidade, promovendo o facilitismo e até a cedência perante a prepotência e a violência, de que é exemplo (apenas um entre muitos) a forma como o recurso à auto-defesa é marginalizado e até censurado, quando se discute o combate ao fenómeno do bullying. Também se enquadra nesta linha, a tendência para criar os jovens em ambientes super protegidos, eliminando o desconforto, o sacrifício e o risco, em que até os normais joelhos esfolados em consequência de brincadeiras físicas são vistos como um drama.

3 Por outro lado, a necessidade de preservação dos valores em que assenta a nossa civilização, como a Liberdade, tem vindo a ser posta em causa pela confusão entre a tolerância e o respeito pela diferença e a cedência perante culturas de repressão e violação de direitos, incompatíveis com a Democracia que tanto custou a construir.

A situação referida no parágrafo anterior, associada ao discurso que se convencionou chamar “politicamente correcto”, é evidente em situações nas quais se chega ao ridículo de quase pedir desculpa aos fundamentalistas por vivermos como vivemos, ou de tolerar como “diferenças culturais” práticas inadmissíveis, como o casamento forçado de crianças ou a mutilação genital.

O abandono da defesa dos nossos valores civilizacionais pelas forças democráticas, tem também o desastroso efeito de abrir espaço aos movimentos extremistas, para se assumirem (falsamente, pois desprezam a Liberdade, que é o primeiro desses valores) como seus únicos defensores.

Este relativismo de valores, contribui também para desmotivar a vontade de defesa da nossa cultura, que tem que estar na base do apoio ao reforço da capacidade militar.

Por todas as razões referidas, as questões sócio-culturais mencionadas na segunda parte deste artigo constituem o maior obstáculo à reversão do processo de declínio, mas é fundamental enfrentá-las se queremos sobreviver como civilização.

PS. O autor não adere ao acordo ortográfico de 1990